# 2 - Anatomia de um Conto: Dissecando "Pictures of You"
Por que escrever ficção curta em tempos de IA — e como três elementos essenciais definem essa forma mais intensa de contar histórias
Uma verdadeira obra de ficção realiza tudo o que se segue, e o faz com elegância e eficiência: cria um sonho vívido e contínuo na mente do leitor; é implicitamente filosófica; cumpre — ou ao menos aborda — todas as expectativas que estabelece; e nos impacta, ao final, não simplesmente como algo consumado, mas como uma performance reluzente.
John Gardner
O primeiro ponto de reflexão que me vem à mente quando penso em literatura é uma pergunta: por quê? Por que dedicar tempo a ler e escrever ficção em uma época onde tudo que parece urgente necessita também ser prático?
Começando por aí, eu não me lembro exatamente da fonte, mas li certa vez que a literatura tem muito conhecimento útil para oferecer. Como uma arte de palavras, no mínimo ela vai te ajudar a se tornar mais sensível à linguagem — sua e de outras pessoas.
Em um tempo em que muitas das tarefas de escrita, revisão e até mesmo compreensão mais corriqueiras estão sendo delegadas para IA, reservar tempo para ler e escrever sem auxílio me parece essencial para manter essa sensibilidade ativa.
Dito isto, o que exatamente é um conto?
Histórias curtas existem há muito tempo na forma de fábulas, parábolas e anedotas, mas o conto moderno é algo do século XIX — mais recente do que o romance, que tem em torno de três séculos. Mas o que o torna diferente?
O conto moderno fez pelo menos três coisas que mudaram a forma como a ficção breve era contada. Primeiro, condensou a ação da história — geralmente em uma única situação focada em um único personagem. Todo o poder dramático e narrativo era comprimido para explorar essa ação — suas motivações, desenvolvimento e efeitos.
Segundo, essa compressão narrativa encorajou uma caracterização mais profunda do protagonista, muitas vezes retratando tanto sua vida interior quanto suas circunstâncias exteriores, o que deu ao conto um senso elevado de realismo.
Finalmente, o conto usou a prosa de maneira poética. Som e ritmo, imagem e símbolo, tom e ponto de vista eram cuidadosamente trabalhados para comunicar não apenas o enredo, mas a experiência física e emocional da história. O resultado foi uma forma de contar histórias mais unificada, intensa e expressiva do que qualquer coisa que os leitores de antes do século XIX haviam conhecido.
No meu conto da semana passada, "Pictures of You", tentei aplicar essas características fundamentais. A ação condensada se concentra nos poucos dias entre o match no Tinder e o encontro final com Júlia — um período curto, mas emocionalmente denso. Escolhi focar em Lucas como personagem único através do qual toda a narrativa flui.
Para quem ainda não leu, o link está disponível aqui.
Pictures of You
Arrastei para a direita e match. Alice. Na foto ela tinha o cabelo colorido de rosa, na altura do ombro. Olhos verdes. Batom escuro, mas não totalmente preto. Filtros? Talvez. Não estava procurando autenticidade e, portanto, mandei mensagem.
Não estou afirmando que consegui cem por cento do que queria — os textos aqui são exercícios e não têm a pretensão de serem ou se compararem a obras-primas finalizadas. Mas como não posso usar contos existentes como exemplo e como meu objetivo é me forçar a escrever e pensar novamente sobre literatura, esse é o caminho que seguiremos.
Enfim, essa compressão narrativa me permitiu explorar profundamente a caracterização:
Lucas emerge através de suas ações patéticas (a masturbação após ver a foto de Alice, o stalking compulsivo nas redes sociais) e sua voz interior autodepreciativa ("Sempre fui patético", "Robô de carne com defeito de fábrica")
Alice é revelada através de contradições — ora vulnerável e doente, ora manipuladora e cruel
Célio e Júlia funcionam como polos opostos: ele como o ideal inatingível, ela como a possibilidade real
A ambientação na São Paulo (e outras cidades grandes) underground — do Ferro Velho aos apartamentos precários — espelha o estado interior dos personagens.
Tento usar a kitnet de 32m² de Lucas como metáfora de sua vida constrita, enquanto o caos da casa compartilhada de Alice reflete sua instabilidade emocional.
Quanto ao uso poético da prosa, tentei empregar:
Repetições obsessivas: "Swipe. Swipe. Swipe" para mimetizar a compulsão mecânica
Imagens viscerais: a camisinha usada, o vômito, o suor — criando uma textura física para a degradação emocional
Fluxo de consciência fragmentado: permitindo acesso direto à mente perturbada de Lucas
Referências culturais (The Cure, Joy Division, Paul Auster) que criam camadas de significado — não é coincidência que "Pictures of You" toque enquanto Alice beija outro
O realismo sujo que tento empregar — inspirado em Bukowski, que os personagens citam — permite que eu explore temas como obsessão, autodestrutividade e solidão urbana sem romantização. É essa crueza, essa recusa em embelezar a experiência humana, que o conto como forma permite de maneira única.
É exatamente essa sensibilidade para as nuances da linguagem e da experiência humana que precisamos cultivar ativamente, especialmente agora que temos ferramentas que podem simular escrita, mas não podem verdadeiramente capturar a complexidade bagunçada e contraditória de ser humano.
Não sei exatamente se consegui o que queria com "Pictures of You", mas foi um exercício que me deu bastante prazer ao longo da semana passada. Escrever é isso também — tentar, errar, acertar às vezes, e principalmente continuar tentando entender o que significa ser humano através das palavras.
Sobre o próximo conto: "Buffer"
Eu tenho outros textos prontos, mas eu os achei muito violentos ou longos para essa semana, então, para o próximo exercício, decidi explorar um território diferente.
Pedi para o Chatgpt gerar um prompt e o que saiu foi:
"Buffer"
Analista de dados em startup. Passa 10 horas diárias criando dashboards que ninguém lê. À noite, assiste 6 episódios seguidos de uma série que esquece no dia seguinte. Percebe que sua vida é um buffer infinito - sempre processando, nunca executando. Desenvolve insônia e fica observando a barrinha de loading do Netflix. A espera como única constante.
Não parecia material para um conto, mas é esse o objetivo, me forçar a fazer coisas mesmo que não sejam tão óbvias à primeira vista.
Comecei a escrever o primeiro parágrafo e a colocar algumas camadas e personagens e o exercício começou a ficar mais interessante do que eu tinha imaginado.
No fim, o que me interessou nessa premissa foi a possibilidade de explorar outra forma de alienação contemporânea. Se em "Pictures of You" trabalhei com a obsessão romântica e a masculinidade tóxica através de Lucas — "Sempre fui patético" —, em "Buffer" quis investigar o vazio existencial através de dados e métricas.
Letícia, a protagonista, vive sua vida como uma planilha Excel:
Eu tinha uma tabela com os horários de meu pai: quando saía e chegava, quando brigavam, quando registrava sons ambíguos do quarto tentando classificar se era amor ou violência, ou ambos.
Mas diferente de Lucas, que se perde em sua própria inadequação, Letícia tenta quantificar o inquantificável — as emoções humanas.
A ideia do buffer como metáfora central surgiu naturalmente:
"Assim era minha vida: carregando, mas nunca carregava. Um buffer infinito, espera sem resolução, uma promessa pendente em um loop de eventos existencial."
É uma imagem que todos reconhecemos — aquele círculo girando eternamente, prometendo que algo está prestes a acontecer.
O conto está se tornando uma exploração sobre voyeurismo digital, invasão de privacidade e a tentativa desesperada de conexão humana em tempos de hiperconectividade.
Quando Letícia invade a vida de outra personagem através de dados, ela não está apenas cometendo um crime — está tentando provar que pode alterar padrões, que pode existir além dos números.
É irônico (ou talvez apropriado) que uma IA tenha sugerido uma história sobre alguém que tenta escapar da existência algorítmica. Em breve compartilho o conto completo — mais uma tentativa de capturar o que significa estar vivo nesta era digital, quando até nossas histórias são sugeridas por máquinas.
Mas essa é apenas minha leitura — adoraria ouvir a sua. O que achou? O que te incomodou? O que ressoou? Qual outra dúvida surgiu durante a leitura?
Obrigado por compartilhar seu conhecimento sobre contos! Tenho certeza que vai ajudar muita gente, inclusive eu.