# 1 - Pictures of You
Quando começou a tocar 'Pictures of You' do The Cure, ela não voltou para a mesa. Ficou ali parada por um momento, de costas para mim. Depois começou a balançar levemente.
Arrastei para a direita e match. Alice. Na foto ela tinha o cabelo colorido de rosa, na altura do ombro. Olhos verdes. Batom escuro, mas não totalmente preto. Filtros? Talvez. Não estava procurando autenticidade e, portanto, mandei mensagem.
"Tá fazendo o que no réveillon?"
Fiquei olhando os três pontinhos aparecerem e desaparecerem. Aparecerem de novo. Isso já foi suficiente para me deixar ansioso de um jeito constrangedor e adolescente. Patético. Sempre fui patético.
Ela respondeu imediatamente.
"Morrendo num bar qualquer. A fdp da minha amiga sumiu com um random."
"Puts, tô em casa na mesma vibe. Bebendo sozinho igual um emo dos anos 2000."
"Kkkkk pelo menos vc tem vodka aí. Aqui só tem cerveja cara e gente insuportável."
Passamos a virada trocando mensagens. Minha imaginação trabalhando horas extras, criando cenas que nunca aconteceriam. Mandei foto do meu copo de vodka. Ela mandou uma selfie no banheiro do bar, a boca entreaberta, olhos vidrados. Sozinho no apartamento, fiz o que já sabia que faria no momento em que vi a foto. Rápido, mecânico, deprimente. Limpei a mão na camiseta — mais uma mancha na minha coleção de derrotas.
Perto do amanhecer, bêbado de coragem e solidão, mandei:
"Bora se ver amanhã? Ou melhor, hoje né?"
"Por que não?"
Ela escolheu um lugar alternativo no meio do caminho. Nos veríamos às 19h.
Dormi o resto do dia. Sonhei que estava transando com ela, mas quando olhava seu rosto, não tinha nada ali. Acordei com a boca seca, um gosto alienígena na minha boca. O despertador tocou às 17h. Por um momento tinha esquecido do motivo de ter colocado ele para tocar. Olhei o celular. A conversa ainda estava lá. Não tinha sido um sonho.
Tomei banho, o sabonete barato do mercadinho aqui da frente que resseca a pele. Esfreguei os dentes até a gengiva sangrar. Passei desodorante demais, depois me preocupei que estava fedendo a Axe adolescente. Me vesti: calça preta, camiseta preta, All Star preto. Olhei no espelho. Parecia um garçom deprimido. Era o que tinha.
O lugar tinha um palco para apresentações ao vivo, mas naquele dia estava deserto. Dia primeiro, todo mundo de ressaca ou com coisa melhor para fazer. Só nós dois, aparentemente, não tínhamos para onde ir.
Pedi uma cerveja e esperei. A espuma desceu devagar, formando uns desenhos que pareciam mapas de países que não existiam. Meia hora. Chequei o WhatsApp. Online há 2 minutos. Uma hora. Online há 15 minutos. Comecei a decorar os cartazes nas paredes. Uma banda de punk melódico que se apresentaria na próxima sexta. Um poeta slam na terça. Todos eventos que eu nunca iria.
O barman me media de vez em quando. Alto, braços tatuados, conhecia o tipo — provavelmente transava com metade das minas alternativas da cidade. Limpava o mesmo copo há vinte minutos. Provavelmente não gostava desses tipos que ficavam vendo a cerveja esquentar. Pensei em pedir outra só para parecer menos inútil. Não pedi.
Quando ela finalmente apareceu, achei ela mais bonita que na foto. Saia preta desfiada, coturnos, camiseta do Ramones regata. Os braços magros, brancos, com umas marquinhas que pareciam antigas cicatrizes de automutilação. Ela tinha os dentes um pouco para trás e os caninos proeminentes, o que a tornava ainda mais atraente para mim. Quando sorriu, vi que a gengiva aparecia um pouco demais. Perfeita.
— Desculpa o atraso.
Não parecia desculpa de verdade.
— Tranquilo.
Mentira.
Começamos a tentar achar algo em comum. Aquela dança desconfortável do primeiro encontro. Ela disse que gostava da mesma cerveja que eu estava tomando. Mentira — ela fez uma careta no primeiro gole. Disse também que não gostava de vodka. Lembrava sua mãe. Provavelmente verdade. Evitava meu olhar quando tentava olhar fundo em seus olhos. Eu suava. Comecei a achar que sentia o cheiro do suor misturado com o desodorante subindo de minhas axilas e tive vontade de correr dali.
— Você trabalha com quê? — ela perguntou.
— Sou... trabalho numa loja. — Não consegui dizer balconista. Eu estava com a faculdade trancada tentando entender o que fazer da vida.
— E você?
— Entre empregos, acabei de terminar a faculdade de letras. Antes trabalhava em uma editora universitária.
Sugeriu que fossemos a outro lugar. Tinha se arrependido de ter escolhido ali. Claro que tinha. Eu não era o tipo de cara que você leva pros seus lugares. Pegamos um Uber. O motorista era evangélico, tinha um adesivo de Jesus no retrovisor. Ficamos em silêncio constrangedor por dois minutos até ela começar a falar. No caminho, ela foi falando dos prédios antigos, dos imigrantes italianos e do passado anarquista da cidade. Usava palavras como "gentrificação" e "resistência cultural". Fingi que entendia tudo. Ela disse que, naquele dia, se sentia anarquista. Fiquei olhando para o joelho dela, imaginando minha mão ali e como ela reagiria. Não tive coragem de testar. Juntei as mãos e as deixei ali, suando.
O lugar se chamava Ferro Velho. Combinava com as pessoas que estavam ali — coisas esquecidas pelo tempo, mas não o suficiente para terem desaparecido. O cheiro de cigarro e cerveja velha impregnado nas paredes. Mofo também. Punks, góticos, artistas. Todos mais bonitos que eu, mais interessantes que eu. Todos a conheciam.
— E aí, Alice! — gritou uma mina de cabelo azul.
— Quanto tempo, gata! — disse um cara de jaqueta de couro.
E ela disse:
— O que eu posso fazer, sou uma curva de rio.
Acenei com a cabeça, guardando a frase para googlar depois.
Continuamos bebendo. Nossa cerveja favorita — pelo menos ela parou de fingir e pediu outra coisa. Uma IPA cara que eu paguei. Descobrimos que gostávamos do mesmo diretor de cinema (Kubrick, óbvio), do mesmo escritor (Bukowski, mais óbvio ainda). Começava a sentir aquela sensação estranha toda vez que olhava para ela ou a ouvia rir. Harmonia de som, cores, movimento. Minhas mãos tremiam um pouco.
— Você conhece Paul Auster? — ela perguntou de repente.
— Não.
— Claro que não. — Mas disse sem maldade. — Ele escreve sobre coincidências que não são coincidências. Tipo, você liga pro número errado, mas era o número certo. Identidades que se dissolvem. Cidades como labirintos. — Parou, bebeu. — Às vezes acho que vivo dentro de um livro dele. Perdida na própria história. Herança do meu pai. Quando ele morreu era obcecado por esse escritor.
— Meus pêsames. — Isso saiu horrível, como qualquer coisa que poderia dizer para alguém que perdeu alguém próximo.
— "O dia começa, você não quer viver, porque não bota fé em quem está contigo." — É a música do Iggy Pop que o Ian Curtis tava ouvindo quando se matou. Meu pai fez a encenação completa. Stroszek e tudo. Mas tudo bem, assim é a vida.
Do nada comecei a sentir uma ansiedade física que me fazia querer arrancar a pele toda vez que olhava para ela ou ouvia sua voz. Sentia minha mão tremendo.
Ela começou a contar uma história de quando fazia teatro. Gesticulava muito, derrubou um pouco de cerveja na mesa. Não limpou. Imitava os exercícios bizarros de respiração que teve que fazer na primeira e única aula que ela foi. Todo mundo olhava pra gente. Pra ela. Eu era só o cara sentado do lado.
— O professor mandou a gente imitar um animal dando à luz — ela ria. — Tipo, como você imita isso?
Ela fez uns sons guturais. Algumas pessoas riram. Notei que agora eu é que evitava seus olhos. Aquela urgência adolescente tomando conta de novo. Constrangedor. Mudei de posição, desconfortável com meu próprio corpo.
— Preciso fumar... — me levantei rápido.
— Eu também.
Fomos na frente do bar. O frio da noite bateu no meu rosto suado. Melhor. Eu tirei o Marlboro vermelho do bolso, as mãos ainda tremendo um pouco. Ela pediu um.
Antes de acender, ela se abaixou para amarrar o cadarço do All Star. A calcinha apareceu um pouco acima da saia. Preta. Renda. Ela deu uma volta por trás do cadarço antes de amarrar. Meu coração disparou. Eu também fazia assim. Desde criança. Minha mãe dizia que era errado. Foda-se.
Ela se levantou e pegou o isqueiro da minha mão. A chama iluminou seu rosto por um segundo. Dava pra ver uma espinha mal escondida pela maquiagem no queixo. Os poros dilatados no nariz. Linda. Pensei em dizer algo sobre o cadarço, mas soaria estranho demais. "Ei, também amarro meu tênis assim!" Ridículo.
Fumamos olhando os carros passar. Um mendigo pediu um cigarro. Dei. O silêncio dela era diferente do meu. O meu era ansioso, procurando o que dizer. O dela era só... silêncio.
Eu joguei a bituca acesa rodando no ar e fiquei olhando a trajetória. Coisa de adolescente. Ela apagou o dela na sola do sapato, profissional. Voltamos para a mesa. Sentia que tinha perdido uma chance de ter tornado aquele momento especial. Mas o que eu diria? "Você me completa"? "Acho que te conheço de outras vidas"? Tudo soava ridículo na minha cabeça.
Na mesa, finalmente estávamos sozinhos. Nenhum conhecido dela por perto, nenhuma história. Ela me olhou e sorriu. Aquele sorriso com gengiva demais. Eu me aproximei, devagar. Podia sentir o cheiro dela — cigarro, cerveja, um perfume doce demais que não combinava com o visual. Por um breve momento achei que ia ter um AVC. Fechei os olhos.
— Alice!
O dono do bar gritou como se estivesse vigiando esse momento. Abri os olhos. Alice já estava distante de novo.
— Quantas cervejas foram? Esqueci de marcar.
Alice levantou as duas mãos mostrando seis dedos. Seis? Eu tinha contado quatro. Não importava, eu pagaria quantas fossem.
Olhei em volta e me senti vigiado. Eu era a única pessoa que não pertencia àquele lugar, eles estavam cuidando do que era deles por direito. Vi rostos conhecidos — conhecidos dela — trocando olhares. Um cara de cabelo verde sussurrou algo para a garota ao lado e ela riu olhando em nossa direção. A mesma garota de cabelo azul de antes fez um sinal que não entendi para Alice.
Paranoia? Talvez. Mas o jeito como o dono do bar tinha gritado o nome dela, o timing cirúrgico... Enfiei a mão no bolso procurando outro cigarro. Precisava de algo para fazer com as mãos, com a boca, qualquer coisa menos ficar ali esperando o próximo movimento num jogo que eu claramente não entendia as regras.
Ela me encarou por um segundo. Estudando. Depois acendeu um cigarro ali mesmo, dentro do bar.
— Não pode fumar aqui — eu disse, olhando em volta. Placa clara na parede: PROIBIDO FUMAR.
— E? — Ela soprou a fumaça na minha direção. — O que vão fazer, me expulsar do meu próprio quintal?
O dono do bar passou por nós e não disse nada. Claro. As regras não se aplicavam a ela.
— Você tá muito tenso. — Ela pediu mais duas cervejas. Fiz as contas na cabeça. Tinha sobrado só 50 reais na carteira. Talvez desse. — Relaxa, ninguém aqui morde. Bom, a Júlia ali talvez morda, mas só se você pedir com carinho.
Apontou para uma garota de cabelo roxo que estava encostada no balcão. A garota piscou de volta. Tinha um piercing no septo que brilhava sob a luz fraca. Bonita demais para mim. Todas ali eram bonitas demais para mim.
— Todo mundo aqui tem uma história — ela continuou, já meio alta. Parou, olhou o celular. A tela iluminou seu rosto por um segundo — 3 chamadas perdidas. Bloqueou rápido, mas vi o nome: Mãe. — Como eu tava dizendo... — A voz ficava mais rouca quando bebia. — O Carlos ali, do cabelo verde? Fugiu de casa aos 15, morou na rua, hoje faz as melhores tatuagens da cidade. A Marina, aquela de preto, tentou se matar três vezes, agora escreve poesia sobre isso. E o Célio...
Ela parou. Deu um gole longo na cerveja. Uma gota escorreu pelo canto da boca. Ela limpou com as costas da mão.
— O Célio é diferente. Vocês iam se dar bem, na real. São parecidos. — Meu estômago apertou. Lá vinha. — Quer dizer, ele é mais... sei lá. Conhece mais coisa. Cinema, literatura, música. Sempre sabe uma banda que você nunca ouviu, um diretor que você precisa conhecer. Semana passada ele me apresentou um filme iraniano que mudou minha vida.
Um filme iraniano. É claro. Eu mal conseguia acompanhar os filmes da Marvel.
— Ele escreve também. Poesia, contos. Já publicou em umas revistas indies. Tem um livro saindo ano que vem.
Tentei parecer desinteressado. Falhei. Podia sentir minha mandíbula travando.
— E vocês...?
— A gente o quê? — Ela riu. Mas não era uma risada feliz. — Nunca rolou nada. Ele é o único aqui que nunca nem tentou. Todo mundo já deu em cima de mim alguma vez, menos ele. Até a Júlia já tentou, e olha que ela é hétero. Mas o Célio? Nada. É como se eu fosse invisível.
O silêncio era como um vácuo que sugava tudo ao redor. Aquela tensão do quase-beijo ainda pairava entre nós, mas agora misturada com a ideia vaga desse cara que eu nem conhecia, mas já odiava. Imaginei ele: alto, magro, óculos talvez. Barba bem feita. Provavelmente não suava comprando cerveja cara para impressionar mina.
Ela se levantou de repente. A cadeira raspou no chão.
— Vou colocar uma música.
Foi até a jukebox no canto. Vi ela passar o dedo pelas opções, inclinar a cabeça. A luz verde da máquina iluminava seu rosto, deixando-a quase fantasmagórica. Fiquei olhando as costas dela, a maneira como mudava o peso de um pé para o outro. A saia subiu um pouco. Dava para ver a parte de trás das coxas, pálidas.
Quando começou a tocar "Pictures of You" do The Cure, ela não voltou para a mesa. Ficou ali parada por um momento, de costas para mim. Depois começou a balançar levemente. Não era bem uma dança, mais um balanço triste de quem está bêbada e melancólica.
Um cara se aproximou. Alto, magro, todo de preto. Não era o Célio — esse era só mais um. Cabelo oleoso, jaqueta de couro falso. Começaram a dançar juntos, primeiro distantes. Ele disse algo no ouvido dela. Ela riu — aquela risada que eu já queria só para mim. As mãos dele encontraram a cintura dela.
Me levantei pela metade, depois sentei de novo. O que eu ia fazer? Brigar? Eu mal conseguia fazer flexão.
E então, como se fosse a coisa mais natural do mundo, eles se beijaram.
Mas ela mantinha um olho entreaberto, me encarando. A língua dela na boca dele, mas o olho em mim. Não era acidente. Era uma mensagem. Continuou me olhando enquanto beijava o cara, a mão dele descendo para a bunda dela. Como se dissesse: "Viu? É assim que se faz. É isso que o Célio não quer. É isso que você também não vai ter."
Peguei minha carteira. Cinquenta reais não iam cobrir a conta. Deixei tudo na mesa mesmo assim. O barman ia ter que se contentar com isso. Saí sem olhar para trás, mas podia ouvir a risada dela atrás de mim. Ou talvez fosse só imaginação. Não importava mais.
Acordei às 6 da manhã com a boca seca e o celular vibrando. Tinha dormido de roupa. Mensagem dela.
"Mds tô morrendo"
Li deitado. Visualizei. Esperei. Outra mensagem.
"Ontem foi foda né"
"Vem aqui? Pfvr"
Olhei a hora de novo. Não eram 6, eram meio-dia. Meus olhos estavam grudados. Minha cabeça latejava. No chão, a garrafa de vodka que tinha comprado na volta estava pela metade. Não lembrava de ter bebido tanto.
"Preciso de ajuda real"
"Tô passando mal"
Pensei em não responder, em bloquear, em fingir que ontem não tinha acontecido. Mas não conseguia controlar meu desejo. Deprimente. Imaginando ela de ressaca, vulnerável, precisando de mim. Talvez ainda estivesse com a roupa de ontem. Talvez estivesse sem roupa nenhuma.
Levantei procurando minha calça no chão. A cueca estava dura de esperma seco. Tinha me masturbado pensando nela quando cheguei em casa. Nem lembrava. Vesti a mesma cueca mesmo assim.
"Tô indo"
Meia hora depois estava na porta dela. Parei no caminho para comprar Gatorade e Doritos. Coisas de ressaca. O cara do caixa me olhou com pena. Devia estar na cara.
Um sobrado velho dividido entre cinco pessoas. A tinta descascando, grades enferrujadas. A roommate que atendeu me olhou com pena.
— Ela tá no quarto. Última porta.
O quarto dela cheirava a cigarro, cerveja azeda e algo mais. Sexo. Aquele cheiro característico de fluidos corporais secos. Vômito também. Ela estava encolhida na cama, ainda com a roupa de ontem. A maquiagem borrada formava duas manchas pretas abaixo dos olhos. O batom tinha sumido, deixando só uma mancha roxa no travesseiro.
— Oi. — A voz rouca, quebrada.
— Oi.
— Desculpa ontem. Eu... bebi demais.
Sentei na beirada da cama. O colchão afundou, velho e molenga. Ela estava pálida, suando. O cabelo rosa grudado na testa. Dava para ver as raízes escuras crescendo. Menos mágica na luz do dia.
— Trouxe Gatorade — eu disse, estendendo a garrafa.
Ela fez que não com a cabeça. Cobriu a boca com a mão.
— Vou no banheiro — eu disse.
— Usa o lá de dentro, esse daqui tá nojento.
Entrei mesmo assim. Precisava ver. O cheiro me atingiu primeiro — vômito fresco misturado com merda. O vaso estava entupido, papel higiênico boiando em água amarelada. No lixo, entre papel higiênico e embalagens de remédio, uma camisinha usada. O látex meio enrolado, o conteúdo se liquefazendo e escorrendo.
Meu estômago revirou. Era ele? O cara do bar? Ou outro que apareceu depois? Lavei o rosto na pia suja. Havia pelos pubianos grudados no sabonete.
Sozinho no quarto, meu olho foi direto para a mesa de cabeceira. Entre cinzeiros improvisados e copos sujos, a cartela de camisinhas. Durex. Extra sensível. Faltava uma. Um livro aberto, virado para baixo — "Cidade de Vidro", Paul Auster. As páginas amareladas, marginália a lápis. Do outro lado, uma garrafa de vinho tinto cara, intocada. Marca francesa que eu não sabia pronunciar. Estranha ali, no meio daquela bagunça. Como se fosse de outro filme.
Ela voltou cuspindo, limpando a boca com as costas da mão.
— Tô com febre — ela disse, se jogando na cama. O movimento fez o colchão ranger. — Ontem exagerei. O cara ainda era brocha.
A confissão casual me atingiu como um soco. Eu não consegui olhar para ela. Fixei o olhar em um poster de Joy Division na parede. Ian Curtis me encarava de volta, morto e indiferente.
— O que foi?
— Nada.
— Vai ficar de cu doce agora?
Cu doce. Enquanto ela tinha passado a noite dando para outro. A raiva subiu quente, mas engoli de volta. Sempre engolia de volta.
Não respondi. Fui até a cozinha imunda — pratos acumulados, moscas voando sobre restos de comida. Achei uma chaleira encardida, fervi água. Procurei chá entre potes de tempero vencidos e restos de maconha. Camomila, deve servir.
Enquanto esperava a água ferver, olhei pela janela suja. O quintal dos fundos era um depósito de lixo. Sofá rasgado, geladeira enferrujada, mato crescendo entre entulhos. Como tudo naquela casa. Como eu.
Levei o chá para ela. Coloquei na mesa de cabeceira, ao lado das camisinhas.
— Precisa comer algo — eu disse.
— Não consigo.
— Trouxe Doritos.
Ela riu fraco.
— Doritos? Sério?
Era ridículo. Eu era ridículo. Um cara de vinte e poucos anos que achava que Doritos curava ressaca. Que achava que cuidar de uma mina que tinha acabado de foder outro ia fazer ela me amar.
Fui até a farmácia da esquina. O sol do meio-dia me cegou. Suor imediato. Comprei dipirona, esomeprazol e soro. A atendente era uma senhora que me olhou com aquele olhar de quem já viu de tudo. Paguei no cartão, rezando para passar. Passou.
Quando voltei, ela estava dormindo. Ou fingindo. Deixei os remédios na mesa e sentei na cadeira do canto. Uma cadeira de escritório quebrada que não parava em nenhuma posição. Fiquei ali olhando ela dormir, como um stalker. Como o perdedor que eu era.
Ela respirava pela boca, um ronco baixo. A barriga subia e descia. Em algum momento da noite, o cara — o brocha — tinha estado ali, tocando aquele corpo. Tentando enfiar o pau mole dentro dela enquanto ela fingia gemidos. Ou talvez nem fingisse. Talvez só ficasse ali esperando acabar.
Me ajeitei na cadeira quebrada, meus pensamentos tinham ficado visíveis. Deprimente e patético.
Ela acordou suando mais ainda.
— Que horas são?
— Três da tarde.
— Caralho. — Tentou se sentar, desistiu. — Passa o remédio?
Dei a dipirona com um copo d'água. Ela tomou fazendo careta. Um fio de água escorreu pelo canto da boca, desceu pelo pescoço. Segui o caminho com os olhos até ele desaparecer entre os seios.
— Para de me olhar assim.
— Assim como?
— Sei lá. Como se eu fosse morrer. Ou como se você quisesse me matar. Não sei qual dos dois.
Os dois, pensei, ou mais ainda. Mas não disse nada.
Ela fechou os olhos de novo. Pedia água. Eu buscava. Pedia para eu ligar o ventilador. Eu ligava. Me sentia um enfermeiro. Ou um cachorro. Provavelmente cachorro.
Por volta das cinco, ela pareceu melhorar. Sentou na cama, acendeu um cigarro.
— Você não devia fumar doente — eu disse.
— Você não devia cuidar de mina escrota — ela respondeu.
Ficamos em silêncio. Ela fumando, eu olhando. O sol da tarde entrava pela janela suja, iluminando as partículas de poeira no ar. Parecia uma cena bonita se você não soubesse o contexto.
— O que você fez depois que saí? — perguntei finalmente. Não aguentava mais não saber.
— Nada demais. Fiquei no bar com o pessoal. Aquele cara foi embora logo depois, nem lembro o nome dele.
O alívio durou dois segundos.
— E depois?
— Aí o Célio apareceu, umas duas da manhã. Ficamos conversando até tarde.
O Célio. Claro. Sempre o Célio.
— Conversando?
— É, conversando. Por que a cara de espanto?
— Vocês vieram pra cá?
— Viemos. Ele queria continuar a conversa, eu tava bêbada demais pra ficar no bar. — Ela apagou o cigarro no cinzeiro improvisado, uma lata de cerveja. — Ficamos na sala, falando sobre música, literatura. Ele me mostrou uns poemas que escreveu.
— Poemas. — Minha voz saiu mais sarcástica do que pretendia.
— É. Poemas. Nem todo mundo só pensa em transar, sabia?
Olhei para ela. A camisinha no lixo gritava o contrário. Mas talvez não fosse do Célio. Talvez fosse só do brocha mesmo. Como se isso fizesse diferença.
— E o cara do bar? O que você beijou?
— O que tem ele? — Ela deu de ombros. — Um idiota qualquer. Na verdade ele veio pra cá. Achei que ia ser divertido, mas o cara era um desastre. Brocha, ainda por cima. Mandei ele embora antes do Célio chegar.
A timeline se encaixava. O cara random, a decepção, depois Célio aparecendo para "conversar". E eu ali, cuidando dela no dia seguinte como um idiota.
— Você tá com ciúmes do Célio? Sério?
— Não tô com ciúmes de ninguém.
— Tá sim. Tá na cara. — Ela se sentou melhor na cama, puxou os joelhos contra o peito. A saia subiu, mostrando a calcinha manchada. — O engraçado é que você devia ter ciúmes do cara de ontem, não do Célio. Com o Célio nunca aconteceu nada. Ele só... conversou comigo. Sobre você, inclusive.
— Sobre mim?
— É. Disse que achou meio babaca você sair daquele jeito ontem. Que eu merecia coisa melhor.
O sangue subiu. Cuidando dela enquanto ela defendia o cara que provavelmente tinha fodido ela a noite toda. O cara dos poemas. O cara que era melhor que eu em tudo.
— Ele não te fodeu porque não quis — eu disse antes de conseguir me controlar.
Ela me encarou. Um sorriso torto apareceu.
— Exato. Ele não quis. Essa é a diferença entre vocês dois.
Me levantei. As pernas bambas de ficar sentado naquela cadeira merda.
— Aonde você vai?
— Embora.
— Não vai não. Senta aqui.
— Tenho coisas pra fazer.
— Que coisas? Ir pra casa bater punheta pensando em mim?
Congelei. Ela tinha acertado, claro. Era exatamente isso que eu ia fazer. Já tinha feito. Provavelmente faria de novo.
— Senta.
Não sentei. Fiquei ali parado no meio do quarto, entre a cama e a porta. Patético até nisso — não conseguia nem ir embora direito.
Ela se levantou, cambaleante. Veio até mim. O cheiro azedo de suor e perfume velho. Se aproximou, colocou a mão no meu rosto. Meu corpo inteiro tremeu. Por um momento eu achei que ela ia me beijar, mas só ficou ali, me olhando e eu derretendo.
— Por que você faz isso? — perguntei.
— Fazer o quê?
— Isso. Tudo isso.
Ela deu de ombros. A mão ainda no meu rosto.
— Por que você se importa?
Eu queria ter falado que era porque a amava, que era como se a tivesse conhecido a vida toda e que éramos almas gêmeas. Que o jeito dela amarrar o cadarço significava algo. Que "Pictures of You" tocando enquanto ela beijava outro tinha me destruído de um jeito que eu não sabia explicar. Mas tudo que consegui falar foi:
— Porque somos amigos.
Ela riu. Tirou a mão do meu rosto.
— Você me conheceu ontem. Não faz ideia de quem eu sou.
— Eu sei que você é especial.
— Especial. — Ela repetiu a palavra como se fosse em outro idioma. — Sabe o que é especial? O Célio escreveu um poema sobre a maneira como a luz da lua reflete nas poças de água da Rua Augusta. Isso é especial. Você trouxe Doritos.
Ficamos sentados na cama. Ela ligou a televisão — uma TV de tubo, antiga, com a imagem meio esverdeada. Colocou um filme do Woody Allen. Manhattan. Preto e branco. Ela disse que adorava.
— A fotografia é linda — ela comentou. — Meu pai escolheu meu nome por conta da Mia Farrow, já começou tudo errado.
Eu odiava Woody Allen. Velho tarado que casou com a filha adotiva. Mas fingi interesse. Ela se acomodou com a cabeça no meu ombro. Podia sentir o calor febril do corpo dela. Meu corpo descontrolado, sempre descontrolado perto dela.
No filme, Woody Allen estava com uma menina de 17 anos. Arte imitando a vida. Alice riu em algumas partes. Eu não achei graça em nada. Não consegui parar de senti-la perto de mim. Não sabia o que fazer.
Ela dormiu no meio do filme. Respiração pesada no meu pescoço. Fiquei imóvel por uma hora, o braço formigando, a bexiga explodindo. Mas não me mexi. Era o mais próximo que tinha chegado dela.
Quando acordou, já era noite.
— Caralho, dormi muito.
— Você precisava.
— Você ficou aqui o tempo todo?
— Fiquei.
Ela me olhou estranha. Quase com pena.
— Você é muito carente, né? Que coisa estranha.
Não respondi. Era óbvio demais para negar.
— Preciso tomar um banho. Tô fedendo.
Ela se levantou, tirou a camiseta e a saia na minha frente. Sutiã preto, básico, a calcinha preta. Os seios pequenos, os mamilos e o monte de vênus marcando o tecido. Não era um strip-tease. Para ela eu era inofensivo. Era só uma mina tirando a roupa suja. Mas meu coração acelerou mesmo assim.
— Não fica me olhando assim.
Virei o rosto. Se não virasse, morreria.
Saí quando ela estava no banho. Não aguentava mais. Deixei um bilhete idiota — "Melhoras, qualquer coisa me chama". Como se ela fosse chamar.
Na rua, a noite estava quente. Grupos de jovens bebendo na calçada, música alta de algum bar. Vida acontecendo. Eu passando por tudo como um fantasma.
Parei num boteco. Pedi uma vodka pura. O garçom me olhou feio — lugar de cerveja, não de bebida de playboy depressivo. Tomei em dois goles. Pedi outra.
No caminho de casa, parei numa loja de conveniência. Comprei uma garrafa da vodka daquelas que vem em garrafa de plástico — a mais barata. O cara do caixa era um paraguaio ou boliviano que nem olhou minha cara. Profissional.
Em casa, o silêncio do apartamento kitnet me abraçou. 32 metros quadrados de derrota. A cama de solteiro encostada na parede. A mesa com o notebook velho. A pia cheia de louça. Lar doce lar.
Abri a vodka. Tomei direto do gargalo vendo o reflexo da cidade pela janela. Prédios iluminados, vidas acontecendo atrás de cada janela. Casais transando, famílias jantando, gente sendo feliz. Ou fingindo ser.
Abri o WhatsApp. A última visualização dela: online há 3 minutos. Estava acordada. Provavelmente conversando com outros. Com o Célio talvez. Trocando poemas sobre poças d'água.
Abri o xvideos. "Gostosa de cabelo rosa". "Alternativa tatuada". "Magrinha pálida". Nada chegava perto. Fechei. Abri o Facebook dela. Fotos antigas — ela mais nova, cabelo castanho ainda. Sorrisos genuínos. Antes de virar essa versão destruída que me destruía.
Uma foto chamou atenção. Ela com um cara. Alto, magro, óculos. Barba rala. Abraçados num bar. A legenda: "Meu poeta favorito <3". Postado há dois anos.
Célio.
Claro que era ele. Olhei cada detalhe da foto. A mão dele na cintura dela. O jeito que ela olhava pra ele. O sorriso. Diferente de todos os outros sorrisos. Aumentei o zoom. A mão dele. Unha pintada de preto. Anel de prata no mindinho. Pulseira de couro. Tudo que eu não era. Tudo que eu nunca seria.
Bebi mais vodka. Voltei pro início do perfil dela. 2015, 2016, 2017. A evolução de Alice. O cabelo mudando de cor. As roupas ficando mais escuras. Os sorrisos diminuindo. Os posts ficando mais niilistas.
"A vida é uma piada e a morte é a punchline."
"Acordo todo dia desapontada por ter acordado."
"O inferno são os outros, mas a solidão também é um inferno."
Citações de filósofos que eu não conhecia. Bandas que eu nunca tinha ouvido. Toda uma vida de referências que me excluíam.
Meia-noite. A garrafa pela metade. Eu sentia que ia chorar se não fizesse algo. Abri o Tinder.
Swipe. Swipe. Swipe.
Rostos se dissolviam uns nos outros. Loiras. Morenas. Ruivas. Sorrindo em Machu Picchu. Abraçadas com cachorros. Fazendo yoga. Segurando taças de vinho. Um exército infinito de pessoas procurando alguém.
Match.
Fernanda. Não abri.
Swipe. Swipe. Swipe.
A bateria do celular em 50%. 30%. O polegar já doía de tanto arrastar. Às vezes eu voltava sem querer, via o mesmo rosto duas vezes. Ou seria outra pessoa parecida? Não importava.
Match. Match. Match.
Não abria nenhum. Só continuava. Para a direita. Para a esquerda. Mostly para a esquerda. Faces sem nome. Nomes sem significado.
20% de bateria.
Comecei a dar like em todo mundo. Nem olhava mais as fotos. Só o movimento repetitivo. Mecânico. Como uma máquina de cassino que nunca paga.
Match.
10% de bateria.
Parei. Olhei a hora. 2:47 da manhã. Quase três horas nisso. Meu olho ardendo. O pescoço duro.
Abri os matches acumulados. Dezenas. Rostos que eu não lembrava de ter visto. Bios que eu não tinha lido.
E então, no meio do monte: cabelo roxo. Piercing no septo.
Júlia.
Era ela. A Júlia do bar. A que "morderia se pedisse com carinho".
Pela primeira vez em horas saí da inércia.
"Oi, vc não é amiga da Alice?"
"Olha só, o coitado"
"Como assim?"
"Nada não. É o apelido da vítima da vez. Ela já te machucou o suficiente né"
"Sobre o que vc tá falando?"
"Deixa pra lá. Conheço de longa data, desde a facul, quando ela era das feministas radicais e até eu caí nessa armadilha. O q tá fazendo acordado essa hora?"
"Digo o mesmo."
"Hmmm... insônia. Minha carona me deixou em casa e o álcool zooou meu sono."
"Sinceramente n sei o q tô fazendo aqui."
"Alguém sabe? Kkkkk"
"Enfim, preciso dormir, te vejo amanhã no ferro velho? Se eu me lembrar podemos brincar de date kkkk"
Olhei a conversa. A vodka tornando tudo nebuloso. Ela era bonita. Disponível. Não era a Alice.
"Claro, até lá"
"Ok"
"Mas olha, não se apaixona por mim tb não viu kkkk"
"Por que todo mundo se apaixona pela Alice?"
"Pq ela é a curva de rio onde tudo que não presta fica preso"
"Já ouvi isso antes"
"Q eu saiba foi eu que inventei isso ® kkk boa noite"
Fechei o app. A vodka finalmente fazendo efeito total. A sala girando levemente. Me arrastei até a cama. Uniforme de trabalho jogado na cadeira. Amanhã era segunda. Balcão. Sorrisos forçados. Clientes. Vida normal.
Peguei o celular de novo. Instagram da Alice. Stories: ela numa festa. Rindo. Saudável. Como se hoje de manhã não estivesse morrendo. Como se eu não tivesse cuidado dela o dia todo.
No fundo do story, desfocado mas reconhecível: Célio.
Joguei o celular longe. Fechei os olhos. Amanhã seria outro dia. Outra chance de não ser patético.
Spoiler: seria.
O despertador tocou às 7h. Dor de cabeça instantânea. Tentei xingar, mas não havia saliva em minha boca.
Banho frio. Café preto. Cigarro. Pensei em comer algo para ver se melhorava o meu hálito de morte, mas olhar para qualquer coisa me dava enjôo.
No ônibus lotado, o cheiro de pessoas. Suor, perfume barato, o cheiro de ônibus. Todos calados olhando para seus celulares como animais indo para o abate. Uma senhora gorda me prensava contra a janela. Um office boy ouvia funk no último volume e eu imaginava se ele já tinha perdido a audição e agora queria castigar todo mundo com o mesmo destino.
A loja ficava em um mini shopping. Vendíamos roupas "descoladas" para adolescentes. All Star customizados, camisetas de bandas da época dos nossos pais que voltaram a ser moda. A revolta oficial contra o sistema.
— Bom dia, Lucas! — Minha gerente, Sandra. 45 anos fingindo ter 30. O Botox paralisou o rosto e a alma.
— Bom dia.
— Anima essa cara! Cliente gosta de vendedor feliz!
Sorri. Doeu fisicamente.
O dia se arrastou. Cada minuto uma eternidade de roupas dobradas e sorrisos falsos.
— Posso ajudar? — perguntei no automático.
Cabelo rosa.
Meu coração disparou. A mesma altura. O mesmo jeito de andar. Me aproximei rápido demais, ansioso demais.
— Esse modelo tem em preto? — A voz era diferente. Claro que era. Alice nunca iria em um lugar como esse.
— Tem sim — minha voz saiu estranha, desapontada. — Ali no fundo, terceira prateleira.
— Você tá bem? — a cliente perguntou, me estudando.
— Ótimo. O provador é ali.
Ela se afastou desconfiada. Mais uma venda perdida. Sandra me fuzilou com os olhos do outro lado da loja.
Tentei me concentrar. Dobrar camisetas. Organizar numeração. Mas toda vez que a porta abria, eu olhava. Toda notificação no celular me fazia conferir. Toda risada feminina me fazia procurar.
Robô de carne com defeito de fábrica.
No almoço, comi um sanduíche no próprio shopping. Frango teriyaki. Mastigando sem gosto, olhando o movimento. Casais de mãos dadas. Mães com filhos. Vidas normais.
Celular vibrou. Alice.
"Oi"
"Melhorei"
"Obg por ontem"
Três mensagens. Mais do que esperava.
"Que bom"
"Precisando tamo aí"
"Tamo aí"? Eu não falava assim.
"Vc é um fofo"
Fofo. A friendzone tem muitos nomes.
"Vou pro ferro velho hj de noite, cola?"
Me lembrei da Júlia. Coincidência bizarra. Ferro Velho. Mesma noite.
"Acho que não. Já tenho compromisso."
Mentira. Mas necessária.
"Sua perda"
"Célio vai tocar umas músicas"
Claro. Célio tocava também. Poeta, músico, curva de rio.
Não respondi. Voltei ao trabalho. "Esse tem em P?" "Aceita cartão?" "Pode fazer um desconto?"
Às 18h eu estava em casa. Banho rápido, a mesma roupa preta de sempre. Às 19h45 eu estava no Ferro Velho.
Estúpido? Sim. Mas a vodka da noite anterior ainda circulava nas minhas decisões.
Júlia estava no bar, cabelo roxo brilhando sob a luz fraca. Roupa toda preta, maquiagem pesada. Linda e perigosa.
— Achei que você não vinha — ela disse quando me aproximei.
— Por quê? Por causa dela?
— É, mas a curva do rio sempre vence — disse rindo.
Ela pediu duas cervejas. Paguei a minha. Ela não me deixou pagar a dela. Sentamos numa mesa de canto, longe do palco improvisado onde Célio afinava um violão.
— Então — ela começou. — Você quer falar sobre a Alice ou quer fingir que isso aqui é um date normal?
— Prefiro fingir.
— Ok. Fingindo então: oi, sou a Júlia. Faço design. Gosto de gatos e odeio gente.
— Lucas. Vendo roupa. Gosto de... nada. Odeio tudo.
Ela riu. Riso genuíno.
— Perfeito. Já temos algo em comum.
Bebemos. Conversamos sobre nada. Filmes que odiávamos. Bandas overrated. A gentrificação do centro. Conversa de gente alternativa padrão. Mas era fácil. Sem peso. Minha curiosidade venceu.
— E ele?
— Ele quem? Ah, o Célio?
— É...
— Não tem muito além do que tá vendo. Ele é um poser... finge de poeta, mas no fim é só um cheirador infantil, mas engana muita gente. Incluindo a Alice.
— Mas ele parece que foi o único que não caiu na dela.
— É, todo mundo se apaixona por ela. Eu caí nessa. — Sabe qual foi meu erro? O mesmo de todo mundo — Júlia disse, enchendo os copos de novo. — Achei que se eu fosse diferente, que ela ia me notar.
— E não notou?
— Notou. Transamos umas vezes. — Ela riu, mas não tinha alegria. — Na terceira vez, ela chorou depois. Disse que Joy Division lembrava de como o pai tinha morrido e que transar comigo a fazia lembrar dele.
Fiquei em silêncio. Não sabia o que dizer.
— Ela te contou do pai?
— Disse que ele morreu. Que era obcecado por Paul Auster.
— Werner. O nome dele era Werner. Professor de literatura na USP. Alice tinha 15 quando aconteceu. — Júlia bebeu. — Ela encontrou o corpo, o cara quis brincar de Ian Curtis.
— Caralho.
— É. Talvez por isso ela fica atrás desses tipos sofridos.
— E você?
— Eu? Eu desisti. Me toquei que tava longe de ser tão quebrada quanto ela queria e não tava a fim de entrar nessa espiral. — Me olhou. — Mas você ainda não chegou lá, espero.
Então Alice entrou.
Cabelo com a cor rosa restaurada e recém-lavado. Vestido preto. Maquiagem perfeita. Não parecia quem estava morrendo ontem. Nossos olhos se encontraram por um segundo. Ela desviou. Foi direto para o palco, cumprimentar Célio.
— Você tá bem? — Júlia perguntou.
— Ótimo.
— Mentiroso.
Mais tarde, ouvi uma confusão vindo do corredor do banheiro. Alice estava discutindo com outra moça.
— Não acredito que você arrumou pó pra ele! — Alice gritou.
A garota saiu dali chacoalhando a cabeça e xingando baixo:
— Vocês dois são doentes. — E foi pegar uma bebida no balcão.
— Se liga, Alice, sou maior de idade — Célio disse, aparecendo na porta e limpando o nariz.
— Vai se foder, depois sou eu que tenho que ficar cuidando de você.
— Ninguém pediu! — A voz dele quebrou no final.
Célio voltou para o palco, olhou em volta, olhos vidrados. Limpou de novo o nariz com a mão e começou a tocar. Voz baixa, melancólica. Letras sobre solidão urbana e amor não correspondido. Original. Alice sentou na frente, olhando como se ele fosse Jesus Cristo.
— Sabe qual é o problema dele? — Júlia disse, seguindo meu olhar.
— Qual?
— Ele tem que manter essa pose de que é bom demais pra ela. Ela acredita. Por isso fica nessa perseguição infinita. Se ele desse mole, ela perderia o interesse em uma semana.
— E por que ele não dá?
— Porque ele é esperto. Ou gay. Ou usa drogas demais. Nunca descobri qual das alternativas.
Rimos. O primeiro momento leve da noite.
Célio terminou a música. Aplausos. Alice foi a primeira a levantar. Abraçou ele. Sussurrou algo no ouvido dele. Ele riu.
— Vamos sair daqui — Júlia sugeriu.
— Pra onde?
— Meu apartamento fica a duas quadras.
Olhei pra ela. O convite estava claro.
— Ok.
O apartamento dela era o oposto do de Alice. Organizado. Cheiro de incenso de verdade, não disfarçando nada. Posters emoldurados. Uma pessoa adulta morava ali.
— Quer beber algo?
— Vodka?
— Tenho whisky.
— Serve.
Ela serviu dois copos. Sentamos no sofá. Silêncio constrangedor.
— Você ainda tá pensando nela — não era pergunta.
— Desculpa.
— Não precisa.
— Por que você me chamou então?
Ela deu de ombros.
— Curiosidade? Tédio? Solidariedade entre rejeitados?
— Você gosta dela.
— Gostava. Superei. Você vai superar também.
— Quando?
— Quando se enroscar em outro lugar.
Bebemos em silêncio. Ela colocou um disco. Joy Division. Claro. Ela sentou do meu lado e encostou em mim.
— Posso te beijar? — ela perguntou de repente.
— Por quê?
— Porque sim. Porque estamos aqui. Porque não importa.
Deixei. Ela beijava bem e nos beijamos por muito tempo. Gosto de whisky e cigarro. Mãos no meu cabelo. Profissional. Mas eu não senti nada. Nada além do vazio de sempre.
Ela parou. Me olhou.
— Você é um caso perdido.
— Eu sei.
— Não vou transar com você.
— Eu sei.
— Mas pode dormir aqui se quiser. O sofá é confortável.
— Obrigado.
Ela foi pro quarto. Voltou com cobertor e travesseiro.
— Lucas?
— Oi?
— Esquece ela. Sério. Ela não vale a pena. Eles se merecem.
— Eu sei.
Mas saber e fazer são coisas diferentes.
Acordei no escuro. O celular vibrando. 4 da manhã.
Alice.
"Vc sumiu"
"Foi embora com a ju?"
"Q isso hein"
Três mensagens. Estava bêbada.
"Tô na casa dela"
"Uau"
"Fast boy"
"Vcs transaram?"
Por que ela queria saber? Por que importava?
"Não"
"Pq não? Ela é gata. Perdeu a chance"
"Pq eu gosto de outra pessoa"
Digitando. Parando. Digitando de novo.
"Eu sei"
"Mas eu não sou essa pessoa"
"Eu nunca vou ser"
"E eu só sei destruir, é de família"
"É literalmente a única coisa que eu faço bem"
"Meu pai tinha razão sobre uma coisa pelo menos"
"Algumas pessoas nascem com o toque de Midas inverso"
"Tudo que tocam vira merda"
De manhã, Júlia me encontrou na sala e me entregou uma caneca de café preto, sem açúcar. O primeiro gole desceu quente e amargo. Ficamos em silêncio, ela observando a cidade acordar pela janela com a luz da manhã em seu rosto. Dourada. Real. Presente.
Não perguntou nada e eu não tinha nada para dizer. Apenas observei o vapor subir de sua caneca, dançar por um instante e desaparecer no ar. Mas meus olhos voltavam para ela. Para a luz desenhando o contorno de seu perfil. Para a maneira como segurava a caneca com as duas mãos. Para a pequena ruga que se formava entre suas sobrancelhas enquanto pensava.
Era a visão mais linda que já tinha visto.
Não porque fosse perfeita. Não porque meu corpo reagisse de forma adolescente. Mas porque ela estava ali. Sólida. Sem performances. Sem mistérios fabricados. Apenas Júlia, de pijama velho, tomando café e existindo.
— Tenho que trabalhar às dez — ela disse sem se virar.
— Posso te ver de novo?
Ela se virou. A luz ainda em seu rosto, mas agora podia ver seus olhos. Cansados, mas gentis.
— Quando você parar de pensar nela por cinco minutos seguidos, me avisa.
— E se esses cinco minutos forem agora?
Um sorriso pequeno.
— Então talvez.
Meu celular vibrou. Alice: "oi, tudo bem?" Olhei para Júlia. Para a luz no rosto dela. Para o momento presente. Arquivei a conversa sem abrir.