# 4 - Passarela
"Ela não conseguia falar, só via os pelos — pretos, grossos, mortos — grudados na carne exposta, como se cada depilação anterior tivesse conspirado para aquele segundo de horror absoluto."
Aviso: O texto a seguir contém descrições de violência e aborda um acidente fatal, o que pode ser perturbador para alguns leitores.
João encostou a bicicleta verde nas outras que já estavam ali na porta do bar. Caminhou devagar para a mesa amarela do canto e puxou a cadeira. Sentou-se onde podia ver a televisão. Passou a mão na irregularidade da ferrugem da mesa e seu rosto se contraiu; se fosse um de seus trabalhos, teria que refazer, deixar liso.
A cerveja e a cachaça chegaram quase junto com ele. Dois copos à sua frente. A cachaça, primeiro, servia para apagar as vozes difusas que se misturavam ao cheiro rançoso de antigas frituras e ao chiado da televisão. Segurou o copo liso na mão grossa e olhou o bar através do líquido amarelo, o gelo anestesiando as juntas doloridas.
Ficava assim por um tempo, em reverência à cerveja. Depois bebia e enchia o copo de novo.
Era assim que seu pai segurava o copo. A mesma reverência. Morreu aos cinquenta e dois, cuspindo sangue numa bacia de alumínio. João tinha calculado uma vez: faltavam sete anos. Sete anos para a bacia de alumínio. Às vezes, quando bebia, confundia o gosto metálico do álcool na boca com o gosto do fim. Antecipação. Ou memória. Não sabia mais a diferença.
Dez horas levantando paredes sozinho. O parceiro não apareceu, de novo.
Zé Carlos, vinte anos mais novo, falava em fazer curso de mestre de obras. Tinha futuro. Ele tentou imaginar o que poderia ter acontecido, mas o rapaz tinha futuro e se dava ao luxo de sumir sem avisar. Gente nova era assim.
Mas ele era diferente. João não faltava há anos. Nem quando a mãe morreu. Trabalhou até o meio-dia, foi ao velório, voltou para terminar o reboco. O encarregado nem soube. Para que ia saber? Por que se importaria?
O copo ainda suava frio em sua mão.
As juntas doíam diferente hoje. Uma dor nova. Presente de aniversário atrasado — fez quarenta e cinco anos na semana passada. Márcia nem lembrou. A filha não se lembrou, ocupada demais com a filha pequena. Quinze anos de idade e já é mãe.
— Sábado tem jogo, vai colar, João? Depois vamos ver o Palmeiras na casa do Narciso.
João nem virou. Eles sempre perguntavam por educação. Fez que não com a cabeça e um gesto vago de mão.
— Coisas para fazer em casa.
Há alguns anos, o Palmeiras era tudo em sua vida. A bicicleta verde era a última herança dessa época. Ele olhou para a televisão e registrou as manchas verdes na tela se movendo como insetos e voltou para o copo.
Quando menino, queria ser jogador. Todos queriam. Agora olhava seus pés — deformados pelos sapatos de bico de aço, unhas pretas de cimento entranhado. Pés de pedreiro. Cada parte de seu corpo ia se conformando ao trabalho.
Ficou ali até se sentir anestesiado. Pagou a conta e saiu em sua bicicleta verde, tentando manter o prumo. Cambaleava às vezes, mas se acertava. Era como fazer uma parede, lento mas confiante, corrigindo quando precisava. O barulho das engrenagens subia e descia na cadência de suas pernas. O ar frio no rosto o fazia sentir vivo, alerta.
O cachorro primeiro latiu de susto. Mas depois, percebendo o erro, abanou o rabo pelado de sarna com tanta força que o corpo todo rebolava. João resmungou algumas palavras de afago que saíram líquidas.
A casa estava escura, exceto pelo brilho azulado da TV. Ela nem virou a cabeça. Márcia. Quarenta e três anos que pareciam sessenta. O roupão desbotado, aberto, revelando a camisola do SUS que ela ganhou quando teve a filha, quinze anos atrás.
O cabelo — que um dia fora preto — agora era uma massa cinza e oleosa presa num coque frouxo. Fios soltos grudados na testa.
Na novela, alguém chorava por amor. Ela comia direto do pote de margarina, enfiando os biscoitos cream cracker. As migalhas caíam no colo, acumulando-se nas dobras da barriga. As pernas inchadas, abertas sem cerimônia, a calcinha bege visível, manchada.
— Tem comida na cozinha — disse sem olhar. A voz rouca de quem fuma dois maços de cigarro por dia. O hálito de café velho e cigarro chegava até a porta.
João viu as varizes azuis subindo pelas panturrilhas. Os pés descalços com rachaduras profundas, as unhas amarelas e grossas que ela nunca cortava. No braço da poltrona, o cinzeiro improvisado — uma tampa de Nescafé cheia de bitucas.
O quarto cheirava a mofo e copos sujos. Ela dormia do lado esquerdo, ele sabia pelos lençóis – uma mancha amarelada em forma de corpo, o travesseiro achatado e seboso. Do lado dele, limpo. Fazia mais de ano que não deitava ali.
Ele pegou o prato de comida, e o feijão desceu como cimento. Lavou a marmita, colocou o resto da comida dentro e guardou-a na geladeira. Sentou-se na cadeira e ficou olhando pela janela. A escuridão lá fora o fez lembrar do passado. Ela nunca tinha sido linda, mas foi bonita. Magra pela situação, a pele lisa da juventude. Seus olhos pretos brilharam no dia de seu casamento e mais ainda no dia em que a filha nasceu. Depois foram se afastando, cada um em seu mundo, ela limpando a casa de estranhos e ele construindo as paredes das casas que um dia ela poderia limpar.
Longe dali, outra televisão perturbava.
— Pode desligar? O som atrapalha a revitalização energética.
As mãos de Vanessa deslizavam sobre a pele da cliente. Óleo de hortelã-pimenta – propriedades revigorantes, dizia o rótulo. Setenta reais o frasco minúsculo.
Joana religou a TV assim que a cliente virou de bruços. Quarenta e poucos anos espremidos numa calça legging rosa-choque. A gordura da barriga vazando por cima, uma massa pálida e mole que tremulava quando ela andava. As mechas loiras — um amarelo-nicotina barato – não conseguiam disfarçar cinco centímetros de raiz preta oleosa. Parecia cabelo de boneca velha, daquelas que as crianças abandonam no quintal e que depois voltam em seus pesadelos.
O certificado do SENAC pendurado torto na parede, letras garrafais anunciando TÉCNICO EM ESTÉTICA. Como se precisasse anunciar, tudo nela gritava SENAC — as unhas postiças descascando, o batom vermelho-farmácia sangrando pelas rachaduras dos lábios, a base três tons mais clara que o pescoço.
Vanessa se lembrou de seu diploma de Direito, muito mais discreto. Três tentativas na OAB. Três reprovações. Mas ainda assim, era Direito na PUC.
— Que estranho, ainda tem mais uma cliente marcada na agenda, depilação, mas não apareceu ainda.
— Claro que sim, boba, eu tô aqui. Eu marquei pra mim. Dia especial.
Ela sentiu que ia vomitar. Tentou encontrar uma desculpa, mas não conseguiu. Por fim, em silêncio, levou Joana para a sala e colocou a cera para aquecer. Enquanto pegava o resto dos materiais, pelo reflexo do espelho, Vanessa viu o namorado de Joana encostado na porta dos fundos, olhando-a fixamente. Vanessa se levantou num pulo quando viu onde ele estava com a mão, mas ainda conseguiu ouvi-lo fazer um barulho com a boca. Ele estava com a mão na virilha num gesto obsceno e não se deu ao trabalho de removê-la dali quando ela se levantou.
— Oi, amor! Chegou cedo — Joana acenou, melosa. — Não vai demorar aqui, espera aí que já vamos.
Ele usava uma calça jeans apertada, camiseta e uma corrente no pescoço. Devia ter metade da idade de Joana. Vanessa conhecia aquele tipo, o parasita. Como tantos outros namorados de Joana, esse também devia viver às suas custas e ainda se achava no direito de assediar outras mulheres na cara dela.
Joana devia saber. Mulheres como Joana sempre sabiam e sempre fingiam que não.
Vanessa espalhou a cera quente. Joana de bruços, a pele branca e flácida tremendo.
— Tira tudo, tá? O Paulo gosta lisinha. Hoje ele vai me comer a noite toda.
Paulo. Claro. Todos eram Paulo, João, José. Intercambiáveis como as notas de dez reais amarrotadas que Joana guardava no sutiã.
O cheiro: suor azedo misturado com perfume barato. Vanessa respirou pela boca enquanto arrancava os pelos do ânus. Joana gemeu.
Pelos pretos grudados na cera. Alguns com folículos brancos, como pequenos vermes. A vulva de Joana, roxa e inchada. Vanessa puxou outro pedaço de cera. O som úmido quando o removeu. Mais pelos. Vanessa tentava desviar o olhar, mas não podia; tentava não imaginar o que aconteceria mais tarde, o que Paulo e Joana fariam. Mas havia algo pior que nojo: o reconhecimento. Ela poderia ser Joana. Bastava um deslize. Uma gravidez no segundo ano de faculdade, um namorado que sumisse, pais menos compreensivos. Quarenta reais era a distância entre o óleo essencial e a cera depilatória. Entre o diploma de Direito e o certificado do SENAC. Às vezes, deitada na cama, sentia que estava escorregando. Que acordaria um dia e seria Joana.
— Você tá bem? — Joana perguntou, mastigando chiclete.
O som que ela fazia era como o de um animal ruminando. Vanessa sentiu uma onda de ódio tão pura que precisou fechar os olhos. Imaginou pegar a cera quente e despejá-la na boca aberta de Joana. Os pelos grudando nos dentes do aparelho. Abriu os olhos. Sorriu.
— Tô ótima. Só cansada.
Joana se virou para o namorado:
— Paulo, espera lá fora. Dez minutinhos, amor.
Ele saiu, e ela logo atrás. Ambos olhando para Vanessa enquanto fechavam a porta.
Seu telefone tocou:
— Filha? Ótima notícia. O Félix, Dr. Ferreira, lembra? Abriu um escritório novo e precisa de assistente. Contei que você se formou em Direito, ele ficou interessado. Amanhã cedo, sete horas, vocês conversam lá.
— Pai, sério? Muito obrigado mesmo! Não sabe como eu estou mal aqui, eu realmente preciso disso.
— Eu sei, filha, vai dar tudo certo. Logo vai tirar sua OAB e vai poder ficar lá mesmo. Gente boa. Gente de confiança.
Amanhã, estaria longe dali. Esse pensamento a reconfortou. Amanhã, um lugar onde homens como Paulo não existiriam. Onde ela não seria um pedaço de carne num açougue. Onde tudo seria limpo, organizado, sem pelos nem olhares grudentos.
Ela olhou para a janela escura.
— Amanhã. Nunca mais.
João acordou com o pescoço torto. O sofá era curto demais, seus pés ficavam pendurados. A casa ainda escura, só o barulho da geladeira velha tremendo. Levantou-se devagar - primeiro um joelho, depois o outro. O corpo protestava.
Na cozinha, a marmita em cima da pia. Feijão e arroz, sempre. Abriu a tampa - o cheiro do feijão velho. Fechou.
Lá fora, o frio cortava. Procurou o moletom no varal - nada. Márcia devia ter guardado. Não ia acordá-la por isso. Pegou a flanela mais grossa que achou, rasgada no cotovelo.
Amarrou a marmita no bagageiro com um pedaço de corda. As ferramentas, numa sacola plástica de supermercado. Alguns pedaços de tijolo novo no bagageiro - o encarregado tinha pedido para ver, talvez usassem na próxima obra.
Montou na bicicleta verde. As engrenagens rangeram. Precisavam de óleo.
A respiração saía em fumaça branca no ar gelado. Quando menino, fingia que era dragão. Agora, só o fazia pensar no cigarro que não podia mais comprar.
O cachorro não apareceu. Frio demais até para o bicho.
Vanessa acordou com o celular vibrando. Terceiro alarme. Sempre deixava três - 6:00, 6:15, 6:30. Sempre dormia até o último.
Levantou-se num pulo. O quarto ainda escuro, apenas a luz do celular. 6:47.
— Não, não, não…
No banheiro, escovou os dentes olhando o WhatsApp. Mensagem do pai de ontem à noite: "Confirmado para as 7h. Dr. Ferreira é pontual. Boa sorte, filha."
O estômago se contraiu. Café ou banho? Não dava tempo para os dois.
Escolheu o café - as mãos tremendo enquanto passava o pó na cafeteira italiana. Presente do pai, é claro. "Nescafé não combina com você, filha."
Vestiu a melhor roupa que tinha - blazer preto, calça social. A blusa branca estava amarelada no colarinho. Passou base para disfarçar. No espelho, ensaiou o sorriso. Advogada. Quase advogada. Assistente jurídica primeiro, depois…
O carro demorou a pegar. Frio e velho. Como tudo na sua vida atual. Mas não por muito tempo.
7:03. O GPS indicava 42 minutos pela rodovia. O Gol 2008 protestou, mas obedeceu. 140 no velocímetro. O carro vibrava. Só precisava chegar a tempo.
O frio entrava pela rasgadura da flanela. João pedalava devagar, as juntas reclamando a cada movimento. Passou pelo açougue do Toninho - ainda fechado. Pelo bar do Zé - grade de ferro baixada. O bairro dormia.
Na padaria, o cheiro de pão. Parou um instante, apoiou o pé no meio-fio. Dois reais e cinquenta o francês. Há quanto tempo não comia pão fresco? Balançou a cabeça e seguiu.
As casas foram mudando. Primeiro, muros mais altos. Depois, cercas elétricas. Por fim, a rodovia.
O barulho dos caminhões chegou antes. O ronco grave dos motores a diesel. A passarela apareceu - concreto cinza contra o céu cinza. Íngreme. Suas pernas já doíam só de olhar.
Desceu da bicicleta. Olhou a passarela, olhou a pista. Lá embaixo, no canteiro central, a cerca cortada. Todo mundo usava. Cinco segundos atravessando contra minutos subindo e descendo.
Um caminhão passou buzinando. O vento quase o derrubou.
As pernas doíam. O joelho esquerdo, pior que o direito. Subir aquilo empurrando a bicicleta...
Olhou de novo o buraco na cerca.
O motor roncava em quinta marcha. O ponteiro do combustível dançava perto da reserva - esquecera de abastecer ontem. Não importava. Depois se preocuparia com isso.
Passou por uma escola - crianças de uniforme esperando o ônibus. Pelo shopping - estacionamento vazio. O velocímetro marcava 120.
A pista subia. O Gol perdeu força; ela reduziu para quarta. 130 de novo. As mãos suadas no volante, apesar do frio.
No horizonte, a passarela emoldurava o sol de inverno, que começava a iluminar o dia de fato.
Olhou o relógio do painel. 7:18. Faltava pouco. Uns quinze minutos mais o tempo de estacionar, se mantivesse a velocidade, se não fosse pega por um radar.
A passarela se aproximando. Vazia a essa hora. Pisou mais fundo. 140. 145. O carro inteiro tremia, parecia que o vidro ia estourar.
— Aguenta firme — sussurrou para o Gol. Ou para si mesma.
A subida terminava logo depois da passarela. Descida livre e a avenida à direita. Quase lá. Só precisava passar por ali.
João olhou para o lado de onde vinham os carros. A subida da pista escondia parte da visão, mas sempre dava tempo. Sempre tinha dado. Levantou o pedal, posicionou-se. As pernas pesadas. Começou a pedalar.
Vanessa viu a passarela no alto da subida. Ninguém em cima. Manteve o pé no acelerador.
A bicicleta verde apareceu do nada.
O tempo esticou e comprimiu ao mesmo tempo. João viu o carro. Vanessa viu o homem. O pé dela procurou o freio. As mãos dele apertaram o guidão. Não foi o suficiente.
O impacto.
A bicicleta voou para um lado. João para outro. O para-brisa estrelou onde a cabeça bateu. O corpo rolou pelo capô, pelo teto, e caiu no asfalto.
Vanessa derrapou. O carro atravessou duas faixas antes de parar no acostamento. As marcas pretas da frenagem ficaram gravadas no asfalto.
Pessoas apareceram. De onde vieram?
Um caminhoneiro parou primeiro. Desceu correndo.
— Meu Deus do céu. Olha o tamanho da freada.
Outros carros. Pessoas com celulares.
— Alguém chamou o resgate?
— Já liguei. Tão vindo.
— A moça tá em choque.
— Ela devia estar voando. Olha onde o corpo foi parar.
João estava no acostamento. De costas. A perna direita dobrada num ângulo impossível. O sangue formando uma poça sob a cabeça.
Vanessa saiu do carro. As pernas bambas. Chegou perto.
Ele respirava. Bolhas vermelhas no nariz. O olho esquerdo inchando, fechando. Uma bola roxa grotesca.
— Sai daí, moça. Deixa ele.
Mas ela não conseguia sair. Ficou ali, vendo. A flanela rasgada subiu com o impacto. A barriga branca exposta. Os pelos grisalhos no peito. No umbigo.
O resgate chegou. Afastaram Vanessa. Cortaram a calça de João para ver a fratura. O osso varando a pele. Sangue. E a virilha exposta - pelos escuros e grossos. O pênis retraído pelo frio e pelo choque.
— Não tem pulso!
— Massagem!
Compressões no peito. O corpo de João sacudindo a cada pressão. Os pelos do peito se movendo.
Vanessa não conseguia desviar o olhar. Como se todos os pelos que arrancou na vida voltassem. Como se cada depilação levasse a este momento. Este corpo. Esta virilha. Este homem morrendo nu no asfalto frio.
Cobriram o rosto dele com a própria calça suja de cimento. A blusa de flanela sobre o sexo.
— Qual seu nome, moça? Moça?
Ela olhava os pelos. Só conseguia ver os pelos. Pretos. Grossos. Mortos.
A bicicleta verde jogada no canto. A marmita tinha rolado, mas parou em pé no acostamento. Intacta.
O celular dela tocava. Pai. 7:34.
Ela não atendia. Não conseguia falar. Só conseguia ver os pelos. Os pelos que nunca mais sairiam de sua cabeça.
Logo levaram o corpo. O carro. Na pista, o trânsito já fluía normalmente. Como se nada tivesse acontecido, só restaram as marcas de frenagem no asfalto como uma cicatriz.