A luz da manhã me agride. Fecho os olhos por um instante — inútil. O céu azul demais, brilhante demais. Nuvens brancas emparedadas no alto tornam tudo ainda mais insuportável. O café gira na xícara, um pequeno redemoinho negro que observo em frente da janela do apartamento antes de sair.
No meio da rua, meu salto quebra no momento exato em que o sinal abre. Os carros buzinam. Motoboys desviam. Me abaixo para remover o outro sapato — comprei esse par há três anos, primeiro dia no escritório, querendo impressionar. Que piada.
Sou quase invisível com meu vestido cinza e pasta preta. Um inconveniente a ser resolvido, coceira difícil de alcançar.
O asfalto queima através da meia-calça. Quando me levanto para correr, uma Land Rover preta acerta meu braço com o retrovisor. Buzina primeiro, depois freia. Através do vidro fumê, o homem me xinga. Sou a secretária atrapalhando seu dia perfeito.
Fico imóvel. O homem grita, gesticula, bate no volante. Sua raiva precisa de plateia, mas eu não sou mais público de ninguém. Observo como quem estuda um inseto sob vidro.
Ele se cansa. Vai embora.
No escritório, meu chefe grita ao telefone sobre aquisições. Me vê através do vidro, faz o gesto. Me requisita como garçom.
Observo através da divisória: meia-idade, sobrepeso, implante capilar recente tentando cobrir o inevitável. Todos iguais, produção em série. Na mesa dele, ao lado do cinzeiro, um desenho infantil emoldurado: "Para o melhor papai do mundo". Sol amarelo no canto, letra tremida. Ele nota meu olhar e vira a moldura.
Levo a pasta com material que preparei até tarde. É minha função saber tudo, antecipar tudo. Ele aponta o relógio. Minutos de atraso que não perdoará.
Papéis cercam o cinzeiro transbordando — ele nunca esvazia, eu sempre limpo. Ainda não. Agora é café. Ele acende outro cigarro. Antes que a nicotina dilate seus brônquios e desperte a necessidade de cafeína, já estou indo.
Volto com a xícara e dois sachês de açúcar. Deixo diante do porta-retrato: três filhos, duas cópias dele, uma da mulher. Bonita, loira, jovem — ou melhor, mantida jovem pelos melhores métodos que dinheiro compra. Organizei o primeiro aniversário dela, cinco anos atrás. Escolhi as flores, o restaurante, até as palavras do cartão.
— Preciso daquele contrato agora de manhã.
— Claro, já vou terminar.
Digito. Um estalo — a unha quebra no meio. Sangue surge através do esmalte. A dor chega devagar. Só agora noto o roxo no braço do retrovisor, só agora sinto o peso de tudo.
Me levanto, vou à janela. A cidade indiferente, escurecida pelo fumê, permanece idêntica. Meu reflexo apagado, marcas do tempo surgindo. Atrás, a mesa me chama de volta. Cheiro de cigarro velho e mofo. Zumbido constante do ar-condicionado. Café requentado no ar, com aquele gosto de cinza que fica na língua — amargo demais, queimado demais, como tudo aqui.
Sangue pinga no carpete. Mancha vermelha escurecendo. Ainda o ouço, eternamente falando. Levo o dedo à boca, sabor metálico. Espalho o sangue nos lábios como batom de guerra.
Vou até o banheiro e, no espelho, vejo meu reflexo: batom borrado de sangue, camisa torta, olhos que não reconheço. São meus? Ajeito a roupa por reflexo, depois rio. Para quê? A mulher no espelho não é mais quem costumava ser. Sinto o mundo girar ao meu redor, e eu no centro, imóvel.
Volto. Termino o contrato com o dedo latejando. Coloco diante dele. Ele bate a mão, derruba café sobre os papéis. Me encara com raiva, como se eu tivesse feito de propósito. Aponta o porta-retrato sem palavras.
Aniversário de casamento. Eu deveria comprar flores, presente para a esposa. Olho o porta-retrato novamente. Sei todas as datas — dele, dela, das crianças. Para que ele não precise lembrar de nada.
Ligo para ela. A decisão surge do nada, ou talvez sempre estivesse ali, esperando.
— Alô.
— Oi, sou eu. Já vou transferir.
Ela reconhece minha voz. Silêncio. Ouço sua respiração, o barulho de uma novela ao fundo.
Tiro a calcinha, solto o cabelo. Rosa listrada, renda antiquada, quase infantil. Deixo o telefone ligado sobre a mesa, escondido atrás do abajur. Levanto a saia, sento em seu colo. Automaticamente, mãos nos meus seios, dedos tentando o sutiã. Logo está sem calças. Nenhuma surpresa — era óbvio que fantasiava este momento.
— Ai, delícia... — ele geme.
Patético. Me levanto.
— Ei! Ainda não terminei, volta aqui, vadia...
Não está acostumado a ser negado. Levanta, vem aos pulinhos, calça no tornozelo. Antes que me agarre, mostro o telefone. A esposa na linha. Ele fica lívido. O tempo se dilata.
Desligo na cara dela. Guardo o telefone, fecho a porta.
O telefone dele explode imediatamente. É ela.
Na minha mesa, despejo café no teclado. As teclas chiam, morrem uma a uma. Papéis no chão. Pisoteio anos de organização. Através do vidro, ele gesticula desesperado com a esposa.
No elevador, o garoto das correspondências. Como sempre, me devora com os olhos. A camisa aberta chama atenção.
Me aproximo. Abro mais dois botões, deixo ver o sutiã. Pego sua mão, guio até minha coxa. Ele tenta o peito. Seguro sua mão.
Coração disparado, respiração curta, heavy metal vazando dos fones. A porta abre.
— Feliz?
Sem resposta. Saio, deixo-o perplexo. Imagino a corrida ao banheiro, lidando com a ereção. Sonhando como poderia terminar, uma, duas, várias vezes. Depois descarga e volta às correspondências.
Na rua, a luz mudou. Já não agride, mas continuo descalça. O asfalto conta uma história diferente agora — não queima, apenas existe. Passo por um café, entro. Peço um expresso duplo, sento perto da janela. A cidade continua seu redemoinho perpétuo: pessoas entrando em prédios, saindo de carros, correndo para compromissos. Eu, pela primeira vez em anos, parada no centro do furacão.
Uma mulher na mesa ao lado me observa — meus pés descalços, minha aparência. Desvio o olhar primeiro, por hábito. Depois volto e a encaro. Ela que desvia agora.
Cartão corporativo no bolso. Saco dinheiro no caixa. Entro numa loja. Compro saia preta, camisa vermelha, sapatos sem salto.
A vendedora é linda. Sardas no nariz, olhos verdes que lembram o mar. Passa a olhar o celular, evitando meus olhos.
— Tudo bem, não mordo — digo enquanto ela anota a venda.
Elisa, diz a etiqueta. Hesita antes de colar. Suas mãos tremem ligeiramente.
— Você tem olhos bonitos — digo. — Não deveria escondê-los.
Ela levanta o rosto, surpresa. Um sorriso tímido surge.
— Obrigada. Você também... quero dizer, seus olhos são...
— Cansados?
— Eu ia dizer intensos.
Pego a caneta, escrevo meu nome e telefone no papel.
— Me liga. Quando quiser. Para qualquer coisa.
Ela cora, mas dessa vez não desvia o olhar. Ela guarda o papel.
Troco ali mesmo. Deixo roupas velhas, sacolas, embalagens.
— Ei — Elisa chama quando passo por ela. — Boa sorte. Com o que quer que seja.
— Obrigada — respondo.
Saio sem direção. Registro quem me olha, nunca desvio. A camisa vermelha chama atenção — não sou mais invisível. Cada olhar é reconhecimento de que existo, de que ocupo espaço.
Ruas se estreitam. O cheiro muda — perfume barato misturado com escapamento, suor e desespero. Homens chamam outros para conhecer garotas. O convite não é para mim. Aceito mesmo assim.
Local sem nome, carros importados com placas cobertas. Entre eles, uma Land Rover preta. Paro. Seria coincidência demais. Mas o adesivo da família no vidro traseiro confirma — é o mesmo. O homem de terno barato, desses de culto, apenas observa.
Abro a porta. Ele corre, puxa meu braço.
— Quero conhecer as meninas.
Senhora de voz rouca, rosto paralisado de botox, faz sinal. Ele solta. Ela me examina de cima a baixo, calculando.
— Primeira vez?
— Sim.
— Tem preferência?
— Vou saber quando ver.
Ela me leva. Corredor estreito, cheiro de desinfetante tentando cobrir outros odores. Cinco garotas dispersas numa sala com sofás gastos. Uma de vermelho, morena, mais velha, faz as unhas. Me olha com desprezo que não esconde curiosidade.
— É cliente.
Levantam-se como marionetes. Menos uma: jovem, vestido branco, cabelos cacheados descoloridos, sardas. Olhava a janela, perdida. Os fios de luz do fim de tarde iluminam seu perfil.
— Jade — a mulher chama.
Pula. Olhos escuros, profundos. Mar noturno onde se pode afogar.
— É ela. Quero ela.
No quarto, me entrega uma toalha. O tecido áspero, cheiro de cloro forte. Fico parada.
— Para o banho.
— Ah.
A água quente escorre. Lavo o dia, o sangue seco, a cidade. Saio nua. Ela também. Corpo jovem, bonito, mas são os olhos que me prendem. Oceanos onde eu poderia me afogar.
Sua boca no meu pescoço, coração acelera. Fazemos amor como nunca fiz, predadoras alternando papéis. Suor, saliva, o gosto de sal em sua pele que me lembra o mar. O despertador cruel.
— Acabou — sorri triste.
Tiro dinheiro para mais tempo, bebidas. Whisky barato que queima a garganta.
— Sempre paga por sexo?
— Nunca. Primeira vez. E você? Sempre vendeu?
Levanta, pega álbum numa gaveta. Book profissional. Fotos de uma garota que poderia conquistar o mundo.
— Não. Tentei modelar. Faltava algo.
— Você é linda.
— Aqui o dinheiro vem rápido. No fim, mesma coisa.
— Por que precisa?
— Era faculdade. Agora... nem sei. Pai abandonou minha mãe...
— O que estudava?
— Direito... mas agora quero um carro. Liberdade, sabe?
— Meu nome não é Jade — sussurra depois, nua ao meu lado. — É Marina. Escolhi Jade porque parecia mais... vendável.
— Marina combina mais.
— Você é a primeira em dois anos que sabe meu nome real.
— O meu é verdadeiro — digo. — O que coloquei no registro.
— Eu sei. Você tem cara de quem não mente.
— Acabei de destruir a vida do meu chefe mentindo.
— Isso não é mentira. É justiça.
Eu rio e depois ficamos um bom tempo em silêncio. Através da parede fina, gemidos ensaiados.
— Vem comigo — digo. — Agora. Pegamos seu dinheiro, suas coisas, sumimos.
— Para onde?
— Qualquer lugar. O mar, talvez.
Ela me olha como se eu oferecesse a lua. Depois a realidade volta a seus olhos.
— Eles não deixam a gente sair assim.
— E se eu pagar sua dívida?
— Não é só dinheiro. É... complicado.
Me acompanha até a saída. A mulher do botox nos vigia como abutre.
— Vem...
— Volta... estarei aqui.
Homem idêntico a todos sai do corredor. Para ao me ver. Reconheço o relógio caro, o anel de casado. Não desvio. Ele murmura algo para a cafetina, passa apressado.
Marina se vai. A Land Rover também — partindo com pressa, deixando marca de pneu.
A noite cai. Luzes de neon piscam, chamando os perdidos. Ando sem rumo até ver o metrô.
Desço as escadas. Pessoas sobem, descem, me atravessam como fantasma. No mapa, procuro uma saída. Meu dedo sangrando deixa marca vermelha na rodoviária.
Passo pelos guichês. Destinos em letras luminosas: São Paulo, Rio, Salvador, Recife. Mar em todos eles, mas só um importa. Compro passagem ao litoral norte. A atendente nem levanta os olhos. Última transação corporativa.
No ônibus, cheiro de ar-condicionado velho e expectativas. Senhora senta ao lado. Vestido florido, bolsa no colo como escudo.
— Vai visitar alguém?
— Não. Só indo.
— Sozinha? Perigoso uma moça...
— Sempre estive sozinha.
Ela tenta mais conversa, desiste. Jovens ao fundo cantam, riem. Vida que não vivi.
— Não fala muito, né?
— Não. Dia cheio.
— Vou lá atrás, gosto de conversar com jovens. Viagem longa, nunca durmo em ônibus — diz, levantando.
Fecho os olhos. O motor vibra, me embala. Durmo sem sonhar.
Acordo com o silêncio. Motor desligado, luzes apagadas. Do lado de fora, o som que reconheço mesmo sem ver — ondas quebrando, chamando.
— Chegamos — o motorista diz. — Cuidado, moça. Mar bravo essa hora.
— Eu sei.
Desço. Ar salgado invade pulmões. Sigo o som, descalça no asfalto frio que vira areia. A praia deserta, lua minguante, estrelas que a cidade esconde.
Sento. Areia fria entre os dedos, grãos finos como tempo perdido. O mar respira no escuro, inspira, expira, eterno.
Sempre amei o mar. Quando criança, nadava até meus pais gritarem para voltar. A água era meu elemento, onde o peso do mundo não existia. Dez anos sem vê-lo. Dez anos me afogando em terra seca.
Tiro a roupa. Vermelha e preta na areia clara. Passo a mão no roxo do braço — já amarelando nas bordas. O dedo lateja no ritmo do coração.
Levanto. O vento frio endurece os mamilos, arrepia a pele. Viva. Estou viva.
Entro devagar. Água gelada nos tornozelos, subindo. Cada onda uma promessa, uma ameaça. O frio corta, depois entorpece. Mergulho.
Silêncio absoluto. Só o coração batendo nos ouvidos. Emerjo, respiro. Nado para longe, braçadas fortes. O sal arde nos cortes, limpa feridas.
Paro. Flutuo. Estrelas acima, abismo abaixo. A água me gira em círculos lentos, cada vez maiores. O redemoinho final, suave.
Fecho os olhos. A correnteza me leva. Para onde? Não importa. Pela primeira vez em dez anos, não luto.
O frio some. Ou me acostumei. Difícil saber onde termino e a água começa. Sal nos lábios, nos olhos. Lágrimas ou mar?
Tempo dilata. Minutos, horas. O corpo pede para voltar. A mente pede para ficar.
O horizonte clareia. Vermelho sangrando no azul escuro.
Sol nasce. Diferente daquela luz cruel. Corpo solto, ondas me levando. Estrelas somem, azul surge.
A água rouba calor, mas leva raiva, cansaço, tudo. O sal cura feridas ou apenas esconde? Não importa.
Ainda flutuo, me deixo levar.
Ao longe, vozes na praia. Gritos. Alguém corre pela areia.
Fecho os olhos.
Quando abro novamente, uma gaivota paira acima. Me observa com olhos vazios de significado. Apenas uma gaivota. Apenas uma mulher na água.
As vozes se aproximam e a gaivota se vai.