# 3 - Buffer
Para quebrar um ciclo de dor, ela se tornou a variável que ninguém podia prever.
Quando paro para pensar em como me tornei o que sou, percebo que era inevitável que eu procurasse padrões em tudo.
Cresci numa casa onde ninguém se importava comigo. Meus pais estavam sempre ocupados com seus próprios problemas, e eu não tinha muito o que fazer além de observar e anotar o que via. Com o tempo, os dados se tornaram meus companheiros. Dados nunca mentem ou enganam — as pessoas fazem isso.
Eu tinha uma tabela com os horários de meu pai: quando saía e chegava, quando brigavam. Cheguei a registrar os sons ambíguos vindos do quarto, tentando classificar se era amor, violência, ou ambos.
De repente, o padrão mudou. Nunca descobri a causa raiz, mas ele começou a chegar cada vez mais tarde, a ficar distante. Por conta disso, o "score de tristeza" da minha mãe aumentava, proporcional à distância dele, e eu acompanhava tudo para entender se havia um limite.
Aos quinze anos, criei meu primeiro modelo preditivo: a probabilidade de divórcio baseada na frequência de jantares juntos, no tempo médio de conversas e na variação do tom de voz, além de outras variáveis que fui incluindo no modelo. Acertei a data com uma margem de erro de três semanas.
Minha mãe chorou quando ele foi embora. Chorou até não ter mais o que chorar, enquanto eu apenas atualizava a planilha.
Eu já sabia — os dados tinham me contado.
Ele se foi de nossas vidas. Um dia, essa variável simplesmente deixou de existir, foi removida do sistema. Não fazia falta, pois já não acrescentava dados novos.
Porém, para o modelo da minha mãe, aquela variável era essencial. Ela ficou ali, entre a vida que tivera e a que poderia ter, até o dia em que simplesmente deixou de ser.
Hoje, na reunião, espero o café gourmet que trouxe comigo atingir a temperatura ideal: 62 graus Celsius, o ponto ótimo entre sabor e a possibilidade de consumo imediato. Ao meu redor, conversas sobre OKRs, burn rate, runway. Palavras que flutuam como variáveis desconectadas de qualquer equação real.
A mensagem era que a empresa precisava crescer exponencialmente e que precisávamos acelerar. Nada fora do normal — era assim desde o primeiro dia. Startups são máquinas de transformar ansiedade em métricas. No dia anterior, passei pelo menos dez horas criando dashboards e extraindo dados para aquela reunião. Cohort analysis, churn rate, LTV, CAC — números que tentavam prever um futuro que ninguém de fato entendia, mas minha função era justamente ser esse oráculo.
O CEO agradeceu. Ele era o tipo de pessoa com uma fascinação estranha por profissionais técnicos que faziam coisas que ele não entendia, mas fingia entender. Estranhamente, eu não sentia orgulho quando algo importante saía de minhas análises. A sensação era a de que eu poderia ter feito melhor, de que poderia ter me esforçado mais ou que, de fato, pudesse ter encontrado algo revelador nos dados e mudado alguma coisa. Mesmo assim, vi os olhares estranhos para mim, julgando-me. Talvez porque eu não celebrava as pequenas vitórias, não batia palmas nos all-hands, não fingia entusiasmo com a pizza às sextas-feiras.
Ele passou o slide e então disse que parecia que eu realmente tinha razão sobre o que aceleraria o growth. Novamente os olhares em minha direção. Falei algo depois disso, mas era como se minhas palavras não tivessem peso, como se, de certa forma, eu estivesse me tornando etérea, transparente, sumindo — uma consulta executando silenciosamente no background, correndo contra o tempo para não dar timeout.
À noite, em casa, eu assistia a um streaming, deixando o algoritmo decidir. Recomendações baseadas em 847 horas de visualização, 73% de conclusão média, preferência por documentários sobre crimes reais. O sistema me conhecia melhor que qualquer pessoa e me alimentava com o que ele sabia que eu gostava. Por um tempo, tentei resistir, mas estava apenas mentindo para mim mesma. Como sempre, os dados não mentem.
Via a informação sendo carregada da mesma forma que passei o dia vendo os dados dos dashboards serem atualizados, da mesma forma que vi o próximo slide ser carregado. O ícone de carregamento, um círculo girando eternamente, prometendo que algo estava prestes a acontecer, mas, no fim, nada realmente se concretizava.
Assim era minha vida: carregando, mas nunca terminava de carregar. Um buffer infinito, uma espera sem resolução, uma promessa pendente em um loop existencial.
Fora do trabalho e sem os dados, minha vida fazia pouco sentido.
No dia seguinte, penúltimo dia de trabalho antes das férias, eu tinha dentista agendado. Marcara antes de saber das férias e não queria falar com um ser humano para remarcar. O lugar que encontrei pelo plano de saúde era próximo e conveniente, mas conseguir um horário levava tempo.
Chegando lá, esperei pacientemente na sala de espera, lendo revistas antigas sem interesse. Por um momento, reparei na recepcionista: cabelos lisos, pretos e grossos, olhos escuros emoldurados por olheiras de quem não dormia bem havia tempos. Ela tamborilava os dedos na mesa em um ritmo irregular — indicador, médio, anelar, pausa, repete —, mordendo o lábio inferior entre uma ligação e outra. Haveria outros padrões?
Durante os vinte minutos de espera, enquanto ela falava ao telefone sobre sua situação, descobri que tinha um filho pequeno (mencionou três vezes), que estava muito difícil conciliar as coisas (tom de voz ressentido) e que o ar-condicionado do consultório a deixava sempre resfriada (dois espirros, limpou o nariz três vezes).
O tempo passava e eu já estava atrasada para uma reunião importante. Ela se levantou e veio em minha direção:
— Oi, é Letícia, né? O doutor teve um imprevisto e não vai poder atendê-la hoje, infelizmente.
Disse isso olhando para o chão, com vergonha de ter que me dispensar depois de toda a espera. Contei três segundos de silêncio constrangedor.
— Você pode me passar seu WhatsApp? Eu entro em contato para um encaixe.
Hesitei por uma fração de segundo de processamento. Tinha problemas severos com privacidade, mas recusar criaria uma anomalia social desnecessária. Passei o número.
Ela mandou uma mensagem no dia seguinte, enquanto eu tentava me recuperar de um pedido para incluir um gráfico de pizza em um dashboard. Gráfico de pizza — a visualização mais inútil já inventada, mas os CEOs adoram. Lívia. Gostei do nome.
Respondi que, naquele horário, eu poderia chegar em vinte minutos. Calculei a rota: 3,2 km, trânsito moderado. No fim, levei dezessete. Nada mal.
Na cadeira do dentista, vi que ela estava auxiliando, talvez pelo horário extra. De máscara preta, seus olhos ficavam ainda mais aparentes. Notei como organizava os instrumentos com precisão metódica, cada movimento calculado. Bandeja à direita, sucção posicionada em um ângulo de 45 graus, luz ajustada antes mesmo de o doutor pedir. Uma eficiência que só vem da repetição exaustiva. Estaria tentando mudar permanentemente para essa função?
Não conseguia pensar em outra coisa. Não percebi na hora, mas logo notaria que Lívia também vivia em um buffer de espera interminável. Ela me acompanhou até a saída e destrancou a porta. Falaríamos depois para agendar o retorno, porque ela precisava ir. Vi pelo vidro quando ela saiu — quase correndo, conferindo o celular a cada cinco passos.
O dia seguinte era meu último antes das férias forçadas que tive de tirar depois de dois anos trabalhando ali. Uma pessoa processara a empresa — burnout, assédio moral, o de sempre — e agora tinham que regularizar a situação. Duas semanas obrigatórias de descanso para todos que nunca tiraram férias. Não deixava de ser um compliance teatral, mas obrigatório.
Mal sabia eu que minha obsessão por dados me levaria a um caminho insólito. Que, sem a rotina de dados corporativos para processar, meu cérebro encontraria outro dataset para analisar.
Eu tinha removido isso totalmente da cabeça, mas, desde que cheguei, todos que me viam perguntavam o que eu faria nas férias. A resposta era a mesma: "Não tenho nada planejado".
Estava preparando as coisas para a minha ausência quando uma pessoa de Produto veio me pedir um último favor antes que eu saísse. Pediu que eu selecionasse alguns usuários recentes, aleatoriamente, para um estudo.
Nada mais simples. Digitei:
SELECT * FROM users WHERE created_at > '2024-01-01' ORDER BY RANDOM() LIMIT 100;
Rodei a query e, estranhamente, ao passar os olhos pelas linhas dos resultados, um nome saltou: Lívia. Conferi o sobrenome, a idade, a cidade. Tentei calcular quantas Lívias deveriam existir em São Paulo e me lembrei da mensagem que ela me enviara. O contato era o mesmo que eu salvara. Verifiquei duas vezes, porque não acredito em coincidências.
A probabilidade de se encontrar uma Lívia qualquer nessa amostra era de 8,67%, mas de encontrar essa Lívia específica entre cem pessoas sorteadas era de aproximadamente 0,0047%.
Estranho. O aplicativo era usado para encontrar serviços especializados e contratá-los de maneira rápida e sigilosa. Estava se tornando popular, então não era surpreendente que ela o usasse, mas sim o fato de que, logo depois de conhecê-la, seu nome aparecesse aleatoriamente entre centenas de milhares de possibilidades.
Meu impulso foi investigar, coletar mais dados. Porém, eu não podia acessar informações detalhadas sem um motivo jurídico — LGPD, compliance, essas coisas — e lutei contra isso pelo resto do dia.
Fechei a janela, reabri como se fosse fazer outra consulta. A tabela estava lá, o cursor piscava como um convite, esperando um input.
Essa necessidade ficou rodando em segundo plano na minha mente, voltando de vez em quando com racionalizações: aquilo não era diferente de analisar qualquer outro usuário, qualquer outro dado da empresa, como eu já fizera milhares de vezes. Mas então, por que não olhar? O que aquilo queria dizer?
Depois do almoço, com minhas defesas mais baixas, a curiosidade falou mais alto. Abri seu perfil. Ali dizia que ela tinha 26 anos, era casada e tinha um filho. Status civil desatualizado. Pelo histórico de atividades, vi que ela procurava por advogados, com palavras-chave como: "direito de família", "pensão alimentícia", "urgência".
Olhei seu endereço e vi que morava longe. Imaginei as horas que levava até o consultório. Eu estava indo longe demais. Fechei a janela novamente e tentei não pensar mais nisso. Porém, naquela noite, já em casa e com duas semanas de vazio pela frente, abri o Instagram. Digitei o nome dela e encontrei facilmente — a foto de perfil mostrava os mesmos olhos escuros, agora sem olheiras, em um filtro Valencia. Rolei para baixo, retrocedendo no tempo, construindo um dataset visual.
Dezembro de 2023: ela e o filho no parque — geotagged Ibirapuera.
Outubro: aniversário de 2 anos do menino — bolo do Homem-Aranha, 47 likes.
Agosto: apenas os dois — a primeira foto sem o marido.
Continuei descendo, mapeando a deterioração.
Março: o marido ainda aparecia — sorriso forçado, distância de 30 cm entre os corpos.
Janeiro: os três juntos, sorrindo — resolução de ano novo, talvez a última tentativa.
2022: o nascimento — 234 likes, pico de engajamento.
2021: grávida — progressão mensal documentada.
2020: casamento — vestido simples, festa pequena.
2019: namorando, felizes — fotos espontâneas, metadata indicando iPhone 8.
Elaborei uma linha do tempo mental. Ela havia se separado por volta de julho, o que era confirmado pela ausência súbita dele nas fotos. Seis meses sozinha, a julgar pela frequência de posts sobre "força" e "recomeço". Voltou a trabalhar quando o filho tinha 20 meses — primeira menção ao consultório.
Encontrei o @ do marido nas fotos antigas — Paulo alguma coisa. Perfil aberto. Gerente de vendas em uma concessionária. Stories de cerveja (Heineken, sempre). Academia (leg day, nunca). Carro novo (Civic 2024, prata). Nenhuma menção ao filho desde maio. Nenhuma menção a Lívia.
Nos dias seguintes, com o vazio das férias forçadas, minha rotina se alterou. O dashboard da manhã virou o Instagram da manhã. As planilhas de clientes viraram as planilhas de Lívia. Comecei a traçar padrões, a documentar rotinas: ela postava stories entre 19h e 20h (filho jantando, sempre macarrão às quartas), silêncio até as 22h (rotina de dormir, história do Pequeno Príncipe), último acesso por volta de meia-noite.
Aos sábados, parque pela manhã — sempre o mesmo banco, mesmo ângulo. Aos domingos, casa da mãe — mesma toalha xadrez, mesmo horário de almoço. Terças e quintas, plantão até mais tarde — os stories diminuíam 68% nesses dias.
Criei um algoritmo mental de previsão: a probabilidade de um story feliz era inversamente proporcional às horas trabalhadas. Acurácia de 84%.
Foi numa terça, sétimo dia de férias, que vi o story: "Alguém conhece babá confiável? Urgente". Postado às 6h43, horário atípico, indicando desespero.
Meu coração acelerou. Senti uma ansiedade que nunca sentira ao pensar no que poderia descobrir. Era uma query direta, uma requisição que eu poderia atender. Um endpoint exposto, esperando uma requisição para me entregar os dados de que eu precisava.
E então, pela primeira vez, senti uma vertigem arrebatadora. A resposta lógica teria sido fechar o aplicativo e ignorar o impulso. Era um dataset alheio, uma vida que não era minha, protegida por camadas de leis e ética que eu já havia contornado perigosamente. Intervir seria corromper a amostra, introduzir uma variável anômala, cometer um crime para satisfazer... o quê?
Enquanto eu assistia a mais um crime ser solucionado na TV, minha mente pintava Lívia como um eco. Ela era o mesmo padrão se repetindo, a mesma espiral descendente, e talvez por isso eu não conseguisse abandonar a ideia. O marido ausente, a sobrecarga, o pedido de socorro disfarçado de post casual. O sistema estava executando a mesma função, apenas com um input diferente. E eu? O que me incomodava era que eu seria, novamente, apenas o log que registra a falha — ou nem isso, se simplesmente ignorasse.
Ou talvez a verdade fosse ainda mais patética. No fundo, eu sabia que aquilo não era um experimento. Era uma tentativa desesperada e distorcida de conexão, um bug no meu próprio código que eu tentava transformar em feature. Se eu pudesse intervir, se eu pudesse injetar um parâmetro e corrigir o resultado de Lívia, talvez isso provasse que o meu próprio sistema não estava irremediavelmente quebrado. Talvez, ao tirá-la do seu loop, eu pudesse finalmente escapar do meu. Eu não estava tentando salvar Lívia. Estava tentando provar que eu mesma poderia ser salva. Ou será que isso também era eu, tentando racionalizar algo irracional que não deveria ter acontecido?
Quando os créditos rolaram na televisão, senti com força que não conseguiria mais apenas observar. Precisava fazer alguma coisa.
No dia seguinte, comprei chips de celular novos e criei um perfil no WhatsApp com um deles. Peguei uma foto de banco de imagens que lembrava vagamente a minha aparência, ajustei a compressão e apliquei alguns filtros para parecer autêntica. Escolhi um nome comum: Marina — o terceiro mais popular para mulheres da minha faixa etária. Elaborei uma mensagem otimizada: horários flexíveis (verdade), experiência com crianças (mentira, mas pesquisei protocolos básicos), com referências falsas para os outros números que comprei, que cairiam na caixa postal para que eu pudesse responder por mensagem ou disfarçando a voz.
"Oi! Vi seu story sobre a babá. Tenho disponibilidade!"
Resposta em 12 minutos: "Oi, Marina! Pode vir conversar amanhã?"
Passei a noite iterando cenários, criando árvores de decisão para cada possível pergunta. Mudei o cabelo, prendi-o num coque apertado — estilo eficiente, confiável. Também comprei um par de óculos que não uso — armação discreta, que passa seriedade. Roupas diferentes do meu usual — calça jeans e camiseta branca lisa, o uniforme universal da invisibilidade.
Cheguei ao endereço que já conhecia dos dados. Prédio dos anos 80, interfone quebrado. Mandei uma mensagem avisando que já estava lá. Ela abriu a porta do prédio e me disse para subir. Atendeu na porta do apartamento 13, o filho no colo, agarrado ao seu pescoço.
— Marina? Entre!
O apartamento era menor do que eu calculara com base no bairro — 45 m² no máximo. Brinquedos espalhados de forma aleatória, criando obstáculos; um padrão caótico impossível de modelar. O filho me encarava, processando dados visuais, tentando classificar: amiga/estranha/perigo.
Lívia parecia exausta, mais do que no consultório. Olheiras mais profundas, sem maquiagem. Havia uma mancha de comida na blusa dela — papinha de legumes, pela cor —, e seus cabelos estavam presos de qualquer jeito. Quando sorria para o filho, um vinco aparecia no canto esquerdo da boca, uma assimetria que indicava esforço consciente.
— Então, é só para algumas noites por semana. Eu tô pegando plantão no consultório e...
Ela parou de repente. A pupila dilatou 2 mm. Seu cérebro iniciara o reconhecimento facial.
— A gente se conhece?
Minha respiração parou por três segundos infinitos. Pane geral no sistema. Meu rosto exibia dados que eu não conseguia falsificar — microexpressões em 43 músculos faciais, reconhecimento de padrões humanos que nenhuma análise poderia prever. Milhões de anos de evolução detectando anomalias.
— Acho que não — menti, forçando um sorriso, com os músculos ativados incorretamente, o que poderia entregar a farsa. — Tenho uma cara comum.
— É que... — ela começou, depois balançou a cabeça. — Deixa pra lá. Desculpa, é que tá corrido. Vamos conversar sobre os horários?
Ela estava desesperada. Claramente não verificaria nada além das referências que entreguei impressas numa pasta.
A criança... O menino se chamava João. Eu tinha que esquentar a comida congelada, separada em potinhos etiquetados. Um alimento de cada grupo. Nenhum tipo de doce ainda, ele não comia. Tinha que dormir à tarde, mas não muito. De noite, ia para a cama cedo, 19h30, ou então não dormiria mais por horas. Gostava que lessem para ele, sempre a mesma história (eu já sabia), e gostava de dormir com cafuné. Não podia ver mais de meia hora de televisão, mas, como passara os últimos dias vendo TV com a vizinha, seria difícil tirá-lo do hábito, então eu estava liberada para deixá-lo um pouco mais.
Ela simplesmente se arrumou e foi para o trabalho, deixando-nos ali, sozinhos.
Assim que ela saiu, ele pediu colo. Eu disse meu nome e ele respondeu: "Malina?". O som saiu dele como se fosse a primeira palavra já inventada. Ma-li-na. Três sílabas que me decompuseram. Eu o peguei no colo e senti seu peso em meus braços. Eu não era uma balança, não conseguia quantificar. Sua temperatura deveria ser de 37,2 °C, ou crianças têm uma temperatura diferente? Mais quente? Ele quis brincar com um chocalho de girafa. Disse, do jeito dele, que não podia pôr na boca. Aquisição de linguagem entre 18 e 36 meses; com dois anos e meio, faltava pouco, mas ainda não chegara lá. Eu cresci abandonada; ele tinha companhia, mesmo que eu não soubesse exatamente o que fazer. Não pediu televisão. Continuou brincando e pulando até que, de repente, dormiu.
Fiquei olhando para ele. Mal dava para ver se respirava. Encostei meu ouvido em seu peito e seu coração batia muito rápido, batia como um código se repetindo: você existe, você existe, você existe.
Mas quem existia? Pela primeira vez, me senti real, segurando uma criança que me chamava por um nome falso.
Eu o deixei dormindo no berço e saí do quarto.
Na sala, tentei me recuperar, ou talvez esquecer aquela sensação concreta de existência. Ela tinha liberado a Netflix, mas a internet não era boa. Parava para carregar de vez em quando, e às vezes demorava muito. Comecei a olhar em volta e a catalogar, mas, fora a bagunça, não havia muita coisa. Nenhuma foto do ex, nenhum padrão naquele caos. Comecei a organizar os brinquedos e a limpar a bagunça.
Ele acordou, comeu, brincamos mais, e li O Pequeno Príncipe várias vezes seguidas, até que ele dormiu de novo. Eu estava exausta e adormeci no sofá.
Acordei com um barulho de carro lá embaixo e uma conversa. Logo ela chegou, deixando as coisas na mesa da sala e tirando o casaco.
— Muito obrigada por cuidar dele. Deu muito trabalho?
— Trabalho nenhum, brincamos muito. Ele é um amor.
— Que bom. Eu realmente não sabia mais o que fazer. Ainda não sei, mas, esta semana, pelo menos, tenho essa solução. Você aceita Pix?
Pix. A palavra me trouxe de volta à realidade da minha situação. Usar essa forma de pagamento me identificaria. Tive que inventar uma desculpa.
— Na verdade, não. Estou com uma dívida no banco. Qualquer dinheiro que cai lá, eles tomam. Eu realmente preciso que seja em dinheiro.
— Ah... Infelizmente, não tenho aqui. Como podemos fazer?
— Não tem problema. Você me paga depois, na próxima vez.
Demonstrar confiança deveria fazer com que ela confiasse em mim.
— Tá bom.
— Você precisa de mais alguma coisa? Nos vemos amanhã cedo, então?
— Não... — ela respondeu, com uma tristeza infinita nos olhos. — Sim, nos vemos amanhã.
— Você está bem? — perguntei, sem pensar.
— Não... Sim... É só cansaço. Tá tudo bem.
Eu travei. Esse não era o tipo de dado que eu estava procurando, não sabia o que fazer. Pensei em abraçá-la, mas não sabia como. Aquilo tinha sido um erro.
No dia seguinte, tudo correu da mesma forma. Passei o dia com João, brincamos, fomos à pracinha, assistimos a Palavra Cantada até ela voltar. O mesmo carro, o rosto dela um pouco melhor.
— Acho que vou conseguir a vaga na creche. Isso vai me ajudar muito.
Não tive tempo de responder. Alguém bateu na porta. Ela olhou pelo olho mágico e abriu. Era o Paulo. Ele subira sem avisar, usando a chave que ainda tinha da entrada do prédio.
Antes que ele me visse, voltei para o quarto de João, um refúgio instintivo, e fiquei ouvindo.
Começaram a discutir. Da porta entreaberta, eu recebia os dados brutos da fúria dele. Seu tom de voz era cada vez mais ameaçador, quase gritado. Ele não a deixava responder. A probabilidade de agressão física subia a cada segundo, um gráfico em ascensão vertiginosa na minha cabeça.
Eram os mesmos gritos. O mesmo padrão das brigas dos meus pais, que eu registrava em minhas planilhas infantis. Mas, desta vez, era diferente. Eu não era mais a criança paralisada no outro quarto. Eu era uma variável não prevista no sistema dele. Minha presença seria uma anomalia. E anomalias quebram loops.
Ele começou a gritar mais forte quando ela cobrou que ele tinha que cuidar do menino, que não o fizera sozinha. Paulo respondeu que o filho não era dele, que ela era uma vagabunda.
O menino acordou assustado. "Malina?". E, naquele momento, a decisão foi tomada. Não foi um cálculo, foi um impulso, uma corrupção deliberada no script que se desenrolava. Peguei-o no colo, seu peso uma âncora na minha realidade instável.
— Estou aqui.
Ele gritava cada vez mais alto. Eu saí do quarto com o menino no colo. Paulo parou e ficou me encarando.
— Quem é você?! — ele perguntou.
— Marina, a babá.
— Desde quando essa puta tem dinheiro pra pagar babá? É dinheiro do amante?
Lívia respondeu, soluçando, que estava trabalhando até tarde, que eu a levara para casa porque não queria que ela andasse sozinha. Que não tínhamos nada.
Não entendi por que ela se explicava como se a culpa fosse dela.
Minha aparição o desarmou.
— Deixa ela em paz. Deixa eles em paz — eu disse, minha voz sem peso.
Ele ficou me olhando, parecia envergonhado por ter uma testemunha, o filho chorando. Lívia pegou o menino no colo. Mostrei meu celular.
— Eu gravei tudo. Gravei o seu abuso no meu celular.
Lívia levantou os olhos e, por um momento, pareceu-me preocupada com o que eu poderia fazer.
— Puta. Vocês são todas umas putas.
— Estou enviando para um amigo advogado. Se fizer algo, vou à polícia.
Seus olhos brilhavam de ódio, mas ele não disse nada. Bateu a porta e foi embora, deixando para trás um silêncio mais pesado que os gritos.
Minhas mãos tremiam, mas não era o tremor frio da ansiedade que eu conhecia. Era algo quente, elétrico. Uma parte de mim registrava o perigo que acabara de passar, o medo pela segurança de Lívia e de João. Mas outra parte, uma parte que me assustou, sentia uma satisfação perversa. Eu não tinha apenas observado o padrão. Eu o alterara. Com um único movimento, eu fui o UPDATE na tabela da vida dele. O poder daquilo era aterrorizante e viciante.
— Covarde.
Foi só quando olhei para Lívia, encolhida, com o rosto banhado em lágrimas enquanto abraçava o filho, que o efeito da minha intervenção se tornou real. O resultado não era um dashboard limpo com métricas de sucesso. Era uma mulher desmoronando. Os dados tinham um rosto, e eles choravam.
— Pode ir — ela disse, a voz quebrada.
— Eu não vou — respondi, as palavras saindo antes que eu pudesse analisá-las. — Se você concordar, quero ficar. Caso ele volte.
Ela assentiu com a cabeça e começou a chorar alto, descontrolada.
Fiquei no sofá, incapaz de dormir, a tensão não deixava meu corpo. Antes que ela acordasse, preparei o café e saí. Fui para casa e fiquei revendo aquele momento e tantos outros como aquele que aconteceram na minha vida, em loop, tentando entender.
Aquilo foi demais para mim. Desliguei o celular de "Marina", mas não consegui apagar o número. Em menos de cinco minutos, ele já estava ligado de novo. Vi a mensagem de Lívia, perguntando se eu poderia voltar hoje.
Eu deveria desligar e sumir, mas respondi que sim.
Nesse dia, João me esperou na janela e veio me encontrar na porta. Não sei como ele interpretou o que acontecera no dia anterior, mas parecia feliz. Entregou-me um papel amassado e cheio de rabiscos coloridos, que ele insistia ser um dinossauro. No canto, em letras tortas que certamente a mão de Lívia guiara, estava escrito: "PARA MALINA".
Meu peito apertou. Era a primeira vez em anos que alguém me dava algo sem esperar nada em troca. Peguei o papel, dobrei-o com cuidado e o guardei no bolso, as mãos trêmulas. Lívia viu. Nossos olhos se encontraram, e neles havia uma pergunta que nenhuma de nós faria em voz alta.
Depois daquela noite, com a ameaça da gravação, Paulo sumiu. Os dias foram passando enquanto Lívia checava o celular obsessivamente.
— Ele não atende mais — disse ela numa noite, fingindo não se importar.
Na verdade, eu sabia onde ele estava. Vira em seu Instagram. Estava com Carla, uma vendedora de sua loja. Dois dias atrás, postara um story: um texto agradecendo a Deus, com uma legenda cheia de emojis de coração.
Passei as duas últimas noites carregando essa informação, sem saber se deveria contar. Não era meu lugar. Mas vê-la esperando, checando o telefone... Era minha mãe de novo, presa no buffer eterno.
Numa noite, enquanto eu esquentava a comida dela antes de ir embora, ela perguntou:
— Você tem filhos, Marina?
— Não.
— Nunca quis?
Olhei para ela. Vi minha mãe ali, no mesmo precipício.
— Ele não vai voltar — as palavras saíram antes que eu pudesse contê-las. — Está morando com outra pessoa.
Lívia parou de mexer na bolsa. Encarou-me.
— Como você sabe?
Menti, disse que os vira por acaso na rua. Ela ficou em silêncio por longos segundos, processando.
— Minha mãe ficou esperando meu pai voltar até o dia em que morreu — continuei, quebrando todos os meus protocolos. — Ficou presa, carregando para sempre. Não deixe isso acontecer com você.
— É diferente. Eu tenho o João.
— Ela tinha a mim. Não foi suficiente para sair do loop.
Lívia me olhou como se me visse pela primeira vez.
Na última visita, ela estava diferente. Seus olhos, menos inchados e sem a moldura escura dos outros dias. Pagou-me sem o peso de sempre. Quando nossas mãos se tocaram, ela segurou a minha.
— Obrigada por me contar.
Então, devagar, levou a mão ao meu rosto e removeu meus óculos.
— Eu conheço você.
Tentei negar, mas as palavras não saíram. Disse que sim, que já tinha ido ao consultório, mas as palavras saíam sem peso. Sem saber o que fazer, saí dali correndo.
Corri por três quarteirões antes de parar. Meu coração batia descompassado, sem padrão. As pessoas me olhavam. Uma mulher correndo sem motivo aparente, uma anomalia urbana. Continuei andando rápido, parei e peguei o desenho do dinossauro, amassado no bolso.
O que eu tinha feito?
Em casa, desliguei o celular de "Marina" e apaguei tudo. Cada foto, cada mensagem, cada rastro digital. O processo levou 43 minutos. Deveria ter levado 10. Minhas mãos tremiam.
Que ideia imbecil. O pensamento patético de que não poderia mais ir àquele dentista me fez rir de mim mesma, com sarcasmo.
Quando terminei tudo, ouvi uma notificação no outro telefone. Era Lívia.
"Eu sempre soube."
"O que você sabe?"
"Que você é Marina. Parte de mim está apavorada. A outra parte... entende a solidão. Não sei o que fazer com você. Deveria ir à polícia, mas você me salvou."
Não há o que fazer. Eu só quero sumir.
Não me lembro do fim de semana. Na segunda, de volta ao trabalho, cada pessoa do RH que passava por mim me fazia gelar. A qualquer momento, poderiam descobrir. Violação de dados, invasão de privacidade, uso indevido de informações sensíveis. Crime, na verdade. Vários crimes.
Tranquei-me numa sala de reunião vazia e abri o laptop. Os dashboards me esperavam, familiares como velhos amigos que eu traíra. Comecei a puxar dados, criar gráficos, tentando me perder nos números. Cohort analysis. Retention rate. Os mesmos padrões de sempre.
Mas os dados não ficaram calados. O desenho do dinossauro não saía da minha cabeça. Em cada gráfico, eu via os olhos de Lívia me reconhecendo; a cada batida do meu coração, ouvia as sílabas do seu nome: MA-LI-NA.
Abri nosso banco de dados. Digitei o nome dela antes de me controlar. O cursor piscava, esperando. Um SELECT * FROM poderia me dizer se ela estava bem, se conseguira o advogado, se Paulo voltara a incomodar.
Fechei a tela.
O Slack apitou. Mensagem do CEO: "Bem-vinda de volta. Ótimo trabalho no dashboard. Os investidores adoraram."
Olhei para a mensagem sem sentir nada. Os investidores adoraram. Que bom para eles.
No bolso, o papel do dinossauro que eu ainda carregava. Toquei-o como quem toca uma ferida. Marina não existia mais, mas seus restos mortais estavam ali — um desenho infantil e três sílabas distorcidas, escritas pela mão de Lívia guiando a de João. Era quase como se eu ainda conseguisse senti-lo.
Eu tinha invadido uma vida para tentar provar que existia. E agora?
A tela piscava, esperando. Sempre esperando. Mas, pela primeira vez, o vazio tinha contorno, tinha peso, tinha o som de uma criança dormindo, tinha o formato exato do medo nos olhos dela quando Paulo gritava. Fechei os olhos e vi minha mãe. Vi Lívia. Vi a mim mesma, refletida infinitamente entre elas — mulheres paralisadas, carregando eternamente, prometendo que algo estava prestes a acontecer.
Mas nada acontece. Nada nunca acontece.
Exceto que João existe. E, por uma semana, Malina também existiu. E agora eu estava aqui, Letícia, nem de fato morta e nem de fato viva, com um dinossauro de papel no bolso e uma mensagem não respondida no celular.
"Não sei o que fazer com você", ela dissera.
Nem eu sei o que fazer comigo. Peguei o celular e gravei um áudio.
"Me desculpe. Me desculpe. Eu não sei o que me deu. Eu só... [pausa longa] Eu só queria... ajudar."
As palavras saem sem peso, mas, desta vez, eu queria ser ouvida. Queria me conectar. Queria que o padrão fosse quebrado e que nada daquilo tivesse precisado acontecer.
No final do dia, terminei o que tinha para fazer e caminhei até a porta. Vi uma mulher parada ali e reconheci Lívia. Quis correr, mas fiquei parada. Ela caminhou em minha direção e parou na minha frente.
— O que eu faço com você? — ela disse, num tom maternal.
Meu primeiro pensamento foi com quem ela deixara João. Tirei o desenho do bolso e tentei entregá-lo a ela, como se não o merecesse. Ela segurou meu braço e me puxou para um abraço. Comecei a chorar como uma criança enquanto ela me apertava, finalmente os ciclos se fechavam.
Que conto incrível!
Eu confesso que comecei ler e durante boa parte da leitura eu não fazia ideia pra onde caminharia a história, qual seria o desfecho, e a curiosidade me instigou ainda mais.
O uso de linguagens técnicas por Letícia para descrever situações da vida real é um sacada muito boa, porque caracteriza muito bem a personagem. Você sente o quanto ela é pragmática e como é impactante, pra ela, o impulso de fugir dos padrões e do previsível para, afinal, provar pra si que existe e, de certa forma, fazer as pazes com o passado.
Essa quebra de parâmetros ficou bastante nítida e muito bem estruturada sim, e numa narrativa mais curta isso é algo bastante desafiador. E ficou excelente!
Aliás, algo que eu gostei também foi essa vibe meio ficção científica, por assim dizer, já que a Letícia se comporta como um andróide que, ao longo da trama, começa ser humanizada e entrar em conflito por conta disso.
Achei genial.